Corte de gastos: Associação diz que proposta do governo ataca direitos das pessoas com deficiência e pede retirada do PL da pauta da Câmara
ANAPcD afirma que mudanças nas regras de benefícios direcionados podem gerar cancelamentos em massa; instituição envia ofício a ministros e parlamentares para tentar interromper trâmite no Congresso e defende discussão do projeto com representantes da população com deficiência.
A Associação Nacional de Apoio às Pessoas com Deficiência (ANAPcD) afirma que a proposta do corte de gastos apresentada na semana passada pelo governo federal ameaça conquistas históricas de direitos da população com deficiência e quer a interrupção imediata do trâmite na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei n° 4.614/2024.
Em ofício enviado nesta quarta-feira, 4, aos ministros Fernando Haddad, da Fazenda, e Macaé Evaristo, dos Direitos Humanos e da Cidadania, a instituição pede a ambos "que atuem firmemente para barrar ou reformular o PL, garantindo que os direitos conquistados sejam mantidos e ampliados, sempre com base no princípio da dignidade da pessoa humana".
O documento foi encaminhado também para senadores e deputados aliados da causa, para que não aceitem a aprovação em regime de urgência enquanto não houver debate.
"Discutir o assunto em regime de urgência é dar as costas para a sociedade brasileira e não aceitar os argumentos de brasileiros e brasileiras que vivem e sobrevivem com dificuldades em todas as regiões da nossa nação. Não é democrático e nem legítimo que algo tão importante para a sociedade seja decidido de forma urgente, sem sequer existir o mínimo de debate com a sociedade", reforça a ANAPcD no documento.
Regras apertadas - Na proposta do governo para o Benefíciode Prestação Continuada (BPC), passam a contar a renda do cônjuge ou do companheiro que não mora na mesma casa, e também a de irmãos, filhos e enteados que vivem na mesma residência, solteiros ou casados. Continua obrigatória a atualização de cadastros sem renovação há mais de dois anos (24 meses) e para benefícios concedidos administrativamente, sem Código Internacional de Doenças (CID). Foi incluída a biometria obrigatória para novos benefícios e atualizações cadastrais. E se alguém da família já recebe o BPC, isso volta a contar como renda para uma possível concessão a outro integrante dessa mesma família.
Entre os pontos que mais preocupam a associação estão as exigências de atualização cadastral periódica e suspensão de benefícios por descumprimento de prazos, restrições à definição da deficiência que ignoram o modelo social previsto na Lei Brasileira de Inclusão e na Lei Berenice Piana, exclusão da proteção que desconsiderava rendas de benefícios da seguridade para o cálculo do BPC, limitação do número de famílias unipessoais beneficiárias do Bolsa Família porque muitas pessoas com deficiência vivem sozinhas e condicionamento do reconhecimento da deficiência à inclusão do código CID em sistemas de informação.
"Nossa proposta é retirar o projeto da pauta e debater com a sociedade para não aprovem goela abaixo porque, se houver cancelamento em massa do BPC, essas pessoas com deficiência terão de provar que têm tem direito, mas onde farão isso, no INSS, que hoje não dá conta nem dos processos de aposentadoria, imagine de mais milhões de ações sobre BPC cancelado? Muita gente que vai ficar muito tempo sem receber, até conseguir provar que tem direito ao benefício", afirma Abrão Dib, presidente da ANAPcD.
Abandono da população com deficiência e omissão do Estado - As novas regras de concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoas com deficiência reforçam a necessidade urgente da regulamentação da avaliação biopsicosocial, prevista no artigo 2° da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (n° 13.146/2015), mas ainda desconhecida pela maioria da população e pouco aplicada pelos órgãos públicos.
Além disso, os "problemas no BPC, a indústria de liminares e as fraudes", conforme declaração do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na verdade, jogam luz sobre o histórico abandono da população com deficiência pelo poder público.
Direito garantido pela Constituição Federal de 1988, regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS (n° 8.742/1993) e pelo Decreto n° 6.214/2007, o BPC foi criado para possibilitar renda mínima a pessoas com deficiência que não conseguem prover o próprio sustento por estarem absolutamente incapacitadas ao trabalho. É um recurso para gente com deficiência, e suas famílias, quando não há mais nenhuma alternativa, mas se tornou um mecanismo que compensa a exclusão do trabalhador com deficiência, um salário em meio ao desemprego e à invisibilidade.
Emerson Damasceno, advogado, autista, pessoa com deficiência física, presidente da Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência da OAB-CE e da Comissão Especial de Defesa da Pessoa Autista do Conselho Federal da OAB, ressalta que o relatório da avaliação foi apresentado em julho, na 5ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
"Aguardamos que seja regulamentada pelo presidente Lula e finalmente implementada. É uma importante conquista trazida pela LBI há quase uma década. É preocupante a fala do ministro Haddad sobre a 'indústria de concessão de BPC' e não me parece realidade. O que sempre houve em nosso País foi uma política de largar as pessoas com deficiência à própria sorte. O próprio BPC funcionava como uma espécie de invisibilização da pessoas com deficiência, que optavam por receber quase a mesma quantia, sem ter que enfrentar inúmeras barreiras, inclusive no acesso à educação, transporte, saúde e no ambiente de trabalho, e receber também um salário mínimo. Isso empurra milhares à informalidade. A culpa nunca foi das pessoas com deficiência, mas sim do Estado brasileiro, que segrega em troca de direito constitucional que é tratado como um favor", diz o advogado.
A transparência e o permanente aperfeiçoamento das regras do BPC e outros direitos garantem que somente as pessoas com deficiência em hipervulnerabilidade social sejam realmente atendidas, seguindo o que estabelecem nossa Constituição Federal a Convenção Internacional da ONU sobre Pessoas com Deficiência (Decreto n° 6.949/2009), afastando o ultrapassado modelo médico da deficiência.