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Country, única 'música branca' popular dos EUA, tem origens africanas

Revelação da existência do country africano em países como Nigéria, Quênia, Suazilândia e Costa do Marfim reforça presença negra na criação do gênero

23 ago 2022 - 11h10
(atualizado às 12h56)
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Abalado pela morte de Elvis Presley, em agosto daquele ano de 1977, um pregador religioso da zona rural do Quênia, na África Oriental, decidiu batizar o primeiro filho de Elvis. Elvis Presley Otieno - alguém que a África veria crescer não para ser um novo rei do rock, como o pai talvez quisesse, mas quase isso. Depois de morar por alguns anos na Noruega e de assistir a um show de Shania Twain nos Estados Unidos, Elvis Otieno decidiu inspirar-se em Charlie Pride, o maior cantor negro do country norte-americano, e lançou sua carreira. Sir Elvis é chamado hoje de "o Rei do Country Africano" por toda Nairóbi e boa parte da África Austral. Sua existência é tão curiosa quanto perturbadora.

A dupla Dusty & Stones: country de Swazilândia
A dupla Dusty & Stones: country de Swazilândia
Foto: PopAfrican

Elvis do Quênia é um dos muitos expoentes de uma cena por anos impensável fora da África, a da Música Country Africana, e, ao puxarmos esse fio, voltamos às origens do próprio country norte-americano, vendido como a "única música popular branca" surgida em território norte-americano: um mito higienista com espantosa força de verdade. Assim como o Velho Oeste foi embranquecido pelos livros e filmes de westerns, apagando milhares de caubóis negros da história, o country não é exatamente um equilíbrio branco na balança que tinha do outro lado o insustentável peso do blues. Dar todos os créditos à "música dos pretos", como dizia Coronel Parker antes de entender que Elvis Presley havia chegado para chutar esse balde, seria demais. Era preciso fazer algo.

A ideia de uma música popular norte-americana genuinamente branca precisava de um ambiente físico genuinamente branco para florescer, por mais que nenhum dos dois existisse no mundo real. Loren Katz, pesquisador da história afro-americana e autor do livro The Black West, deu o contexto em uma recente entrevista ao jornal The Guardian: "Logo após a Guerra Civil, ser caubói era uma das poucas vagas abertas para homens negros que não queriam trabalhar como ascensoristas, entregadores ou outras ocupações semelhantes". Muitos negros eram enviados para tocar rebanhos e enfrentar as flechas indígenas na expansão do Oeste.

Festa com música country no Quênia
Festa com música country no Quênia
Foto: Africanpop

Mas a origem negra e secreta do country não tem inconvenientes apenas de contexto geográfico e social: a música, tecnicamente falando, também foi feita de cruzamentos entre raízes europeias, escocesas e irlandesas, e sangue africano. Além de artistas negros norte-americanos terem sido sistematicamente apagados, um instrumento de quatro cordas de aço conhecido como o coração metalizado do country, o banjo, nunca teve sua ancestralidade africana devidamente creditada. "Muitos instrumentos de cordas africanos já soavam como o banjo, já eram seus ancestrais", disse o músico e pesquisador de Gana, Nii Adotey, em entrevista ao documentário sueco Contradict, dos diretores Peter Guyer e Thomas Burkhalter. O banjo, que Almir Guineto colocaria no samba depois de vê-lo sendo tocado na música country, não estava mesmo tão longe do Brasil.

E mais: Hank Williams, o maior nome do country branco de todos os tempos, aprendeu tudo com um bluesman negro, um músico de rua chamado Rufus Tee-Tot Payne. Payne lhe deu aulas de violão, ensinou as estruturas do blues e mostrou a Williams acordes e inversões de baixo dos quais seu country se logo se apropriaria. "Ele me deu toda a educação musical de que precisei", disse o próprio cantor. Payne morreu em 1939, em um hospital de caridade, e a localização exata de seu túmulo é desconhecida. Williams morreu em 1953, aos 29 anos, quando já havia acumulado uma fortuna.

Sir Elvis: o rei do country de Nairóbi
Sir Elvis: o rei do country de Nairóbi
Foto: Nairobi

Mais tarde, outro homem negro nascido em Sledge, no Mississippi, só não seria apagado antes mesmo de existir porque seu talento se mostrou incontornável. Charley Pride, com 52 hits no topo da Revista Billboard, se tornou o artista mais vendido da RCA Records desde Elvis Presley. Filho de pais meeiros pobres, com dez irmãos, teve o rosto escondido nos materiais de promoção dos seus primeiros álbuns para que ninguém visse sua cor. Ao subir em um palco pela primeira vez para um show ao vivo, a plateia ficou em silêncio. Até ouvir sua voz. Sua morte foi em 2020, aos 86 anos, de Covid.

Charlie Pride: não conseguiram apagar seu talento
Charlie Pride: não conseguiram apagar seu talento
Foto: Buzzcoks

A África, enquanto isso, fazia prosperar seu próprio country livre de racismos - já que, tirando uma cena de country na África do Sul protagonizada por duplas, cantores e cantoras brancas que reproduzem exatamente o formato de música que chega do outro lado do Atlântico, todos os outros artistas são negros. Como essa música chegou por lá? Um dos portais se abriu no pós Segunda Guerra Mundial, quando soldados africanos retornaram a seus países cheios de influências dos norte-americanos aliados, difundindo e cantando canções que aprenderam no front. Outra capilaridade cultural se deu nos anos 50, com a exibição de filmes westerns para trabalhadores em cidades coloniais de mineração. A música country ganhava na África por soar autêntica, falar sobre os trabalhadores e sua relação com a terra e ser tocada por instrumentos de corda com sonoridades metálicas tão familiares. Antes de ser de alguém, eles entendiam, aquilo era tudo era seu.

O country africano começa espantosamente um pouco depois de seu surgimento nos Estados Unidos, entre as décadas de 1920 e 1930. Gravações de um período posterior a esse, entre 1950 e 1960, estão na memorável compilação Bulawayo Blue Yodel, lançada em 2019 pelo selo Olvido Records. São 14 faixas de nomes sobre os quais pouco se sabe e, em casos como o de George Sibanda, do Zimbábue, e de Petrus Mntambo, da África do Sul, nem fotos existem. Sibanda é considerado a primeira estrela da África Subsaariana, abaixo do Saara, descoberto em 1948. Sua música se espalhou via rádio pela África do Sul, Zâmbia, Maláui e Quênia e, antes de morrer como um alcoólico desconhecido no final dos anos 50, teve ao menos uma delas, Guabi Guabi, regravada por vários artistas folclóricos nos Estados Unidos. Um feito reverso.

Capa da coletânea com o country africano dos anos 40
Capa da coletânea com o country africano dos anos 40
Foto: Reprodução

Sir Elvis, no Quênia, toca violão, piano e banjo, lançando álbuns desde o início dos anos 2000 e vivendo de sua popularidade. Oby Onyioha, na Nigéria, se tornou uma cantora de grande sucesso em 1981, com o lançamento de seu primeiro álbum, I Want To Feel Your Love. Christy Uduak Igbokwe, morta em 2011, ainda é lembrada como a "senhora das canções da Nigéria" por falar fluentemente vários dialetos, além do inglês. A dupla Dusty & Stones são do pequeno país Eswatini, antigo Suazilândia, a última monarquia absoluta da África. E Jess Sah Bi & Peter One, da Costa do Marfim, se tornaram grandes ídolos também pela África Ocidental nos anos 80, antes de se mudarem para os EUA. Hoje, fazem turnês pelo território norte-americano graças ao álbum Our Garden Needs Its Flowers, de 2018. Não deve ser fácil vê-los cantando canções como Apartheid na terra que acreditou tê-los eliminado de sua imaculada country music.

Veja alguns nomes do chamado 'country negro':

1. Dusty & Stones (de Suazilândia)

2. Sir Elvis (Quênia)

3. Jess Sah Bi & Peter One (Costa do Marfim)

4. George Sibanda (Zimbábue)

5. Charlie Pride (Estados Unidos)

Estadão
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