"Criança não nasce com preconceito", diz Mauricio de Sousa
"Pai" da Turma da Mônica amplia a diversidade em gibis e diz que pode criar um personagem gay em alguma publicação para jovens adultos
Aos 86 anos de idade, Mauricio de Sousa nem pensa em parar ou sequer diminuir o ritmo. "Como adoro o que faço, não vejo isso como trabalho. Cuido da saúde para continuar fazendo o que faço", diz o mais célebre cartunista do Brasil.
Após a aclamação na última Bienal do Livro de São Paulo, ele sê vê à volta com diversos projetos. Enquanto cuida dos detalhes de sua cinebiografia, prevista para estrear nos cinemas no final de 2023, Mauricio comemora a reabertura dos estúdios Mauricio de Sousa Produções para visitação. "Adoro as breves e espertas conversinhas com as crianças bem como as emocionadas lembranças dos fãs adultos", conta.
Ele ainda colhe os louros sobre a recém-lançada série da Turma da Mônica no Globoplay e cogita com a equipe a criação de novos personagens cheios de representatividade. Idosos, pessoas com deficiência e, quem sabe, até a comunidade LGBTQIA+ não fogem de seu radar. "Tudo é considerado com muita pesquisa e responsabilidade", diz ele, que gosta de afirmar que todo mundo aprende com as diferenças. Em entrevista ao Nós, ele comenta como lida com o tema da diversidade em seu trabalho.
No ano passado, o senhor comentou em entrevista que estava cogitando a criação de um personagem gay na Turma da Mônica Essa discussão avançou?
Há 63 anos nossas histórias vêm se transformando e incorporando temas que fazem parte da sociedade brasileira. Haverá um momento em que temas como este podem estar dentro de alguma publicação nossa para o jovem adulto. Uma exemplo é a graphic novel "Tina – Respeito", de Fefê Torquatto, que teve como tema central o assédio no ambiente de trabalho. E uma de suas amigas é do grupo LGBTQIA+. A criação de um novo personagem é um processo complexo, que envolve várias equipes e muito cuidado para passar a informação correta e sem preconceito. Conversamos com quatro gerações de fãs, adequando nossos conteúdos a cada faixa etária, sempre com muita pesquisa e com responsabilidade.
O senhor pensa em tocar em temas sensíveis nos gibis? A Turma da Mônica Jovem permite uma maior experimentação nesse sentido?
A Turma da Mônica tem leitores de todas as faixas etárias. Conseguimos conversar de maneira diferente com as crianças pequenas, as mais velhas, os jovens, os adultos... Conforme as faixas etárias vão aumentando, é possível tratar de assuntos mais complexos, com o respeito devido. As graphic novels, por falarem com um público jovem adulto, permitem que avancemos um pouco mais em questões mais delicadas. A Turma da Mônica Jovem já permite abordar temas que não estão nas histórias clássicas, como os conflitos relacionados aos estudos e à futura profissão, os relacionamentos amorosos que se iniciam, a experiência de perder um amigo querido e viver esse luto... Assim por diante.
Ainda sobre a expectativa em relação a um personagem LGBTQIA+ no gibi, lembro que na época o senhor e o seu filho Mauro foram alvo de alguns comentários preconceituosos nas redes sociais sobre essa ideia. O senhor acha que as crianças são bem mais abertas às diferenças e à liberdade de escolha do que os adultos? Por quê?
As crianças não nascem com preconceitos. Convivem bem com as diferenças, brincam juntas e aprendem umas com as outras. Eu sempre aprendo com elas. Acho que todos podemos aprender com as diferenças.
Recentemente, o senhor falou que está estudando uma maneira de atender o público idoso. Personagens como Tia Nena, Vovoca e Vó Dita são representações bem distintas de mulheres idosas. O idoso hoje tem, digamos, muitas caras, certo? Qual delas gostaria de incluir em suas histórias?
A Vó Dita foi inspirada em minha avó de mesmo nome que reunia os amiguinhos na casa dela e contava histórias. Sim, as pessoas idosas são diferentes entre si. Quanto mais personagens idosos tivermos, mais experiências diferentes vamos poder retratar. Com meu neto Martin, filho da Marina, por exemplo, sinto que sou um avô bem diferente do que fui para outros netos, pois essas experiências foram me transformando. Temos também dois personagens idosos, a Joana e o João, que estamos desenvolvendo e que devem trazer um pouco dessa nova geração de idosos.
Milena é um sucesso absoluto que conquistou o amor das crianças pela representatividade e simpatia. O senhor avalia tratar do combate ao racismo de uma forma mais declarada através dela?
O Bairro do Limoeiro é o mundo como eu gostaria que ele fosse, por isso não existe espaço para o racismo. No entanto, sabemos que o racismo, infelizmente, ainda faz parte da nossa realidade. É possível, sim, que em conteúdos institucionais ou em livros mais específicos a Milena apareça ligada a temas que abordem de maneira mais direta a questão, como aconteceu com Jeremias, personagem criado em 1960, antes mesmo da Mônica. Na graphic novel "Jeremias - Pele" (2018), ele enfrenta o racismo ao entrar em contato com o mundo fora da família. Foi uma obra que teve uma excelente acolhida, ganhamos o Jabuti com ela. E poderá até virar filme.
Pensa em abordar mais minorias ou outros temas ligados à diversidade e inclusão nas suas histórias?
A Turminha está sempre crescendo e tem espaço para muito assunto e personagens ainda! Acabamos de lançar a Sueli, uma garotinha surda que adora esportes e vai nos ajudar a trazer ao público mais informações sobre Libras, a Língua Brasileira de Sinais, e outras questões relacionadas à comunidade surda. Na Bienal, lançamos um livro bilíngue em Libras e português em que a Sueli é protagonista, levando às crianças o conto clássico "O Lobo e os Sete Cabritinhos".
Aliás, como é o processo de pesquisa para inserir personagens diversos nas histórias?
Cada personagem tem sua história. O André, personagem autista, surgiu de um projeto do Instituto Mauricio de Sousa para informar os pais sobre os sinais de autismo. Hoje, temos uma parceria com a "Revista Autismo" e também roteiristas que fazem parte do espectro e trazem sua experiência para as histórias. Estamos desenvolvendo agora a família da Sueli, que falei antes, com apoio da Derdic, vinculada à PUC-São Paulo, e conversando com pessoas da comunidade surda, sempre com muita responsabilidade.
Qual a diferença entre ser pai e avô?
Como pai tive dez filhos com quem aprendi muito com suas diversidades. Os netos repetem muito do que aprendemos, mas a realidade, as mudança de hábitos e o progresso nos abrem novos caminhos no trato. É um um novo aprendizado carregado de carinho e admiração. É diferente... mas vem com mel.
Quais são os seus planos para o futuro? Há algo que queira realizar muito e ainda não realizou?
Para mim o futuro é hoje. Mais para frente vou ter vários futuros para mais ideias. É viver, aprender e criar.