Denúncias de intolerância religiosa mais que dobram em 4 anos; polícia apura morte de Mãe Bernadete
São Paulo, Rio e Bahia concentram o maior número; governo cria programa para garantir que tradições sejam valorizadas e preservadas
Mãe de santo há mais de 20 anos, Doné Solange Machado D’Ogum fazia um ritual em uma mata em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, na semana passada, quando foi apedrejada por dois jovens sob gritos de “macumbeiros desgraçados”. A sacerdotisa do terreiro Kwe D’Ogum estava acompanhada de dois filhos de santo, que junto com ela conseguiram escapar sem ferimentos do episódio.
“A pedra passou pelo rosto de uma filha de santo. Se pegasse na cabeça, era morte na certa. Eram pedregulhos enormes. Estávamos no meio do trabalho e eles gritando ‘macumbeiros desgraçados, miseráveis’. Fiquei muito mal, nunca pensei em passar por isso”, contou ela ao Estadão. “Entrei para o santo com 14 anos e estou com 62, sempre ouvi falar disso. Na minha porta, passavam excomungando, mas nada assim agressivo, de agressão física, de machucar. Dessa vez foi horrível.”
Casos como o de Doné Solange são cada vez mais frequentes no País. Também na semana passada, a líder quilombola e ialorixá Mãe Bernadete foi assassinada a tiros na Bahia. Uma das linhas de investigação da Polícia Civil considera a possibilidade de que o crime tenha sido motivado por intolerância religiosa, além de outras hipóteses como disputa de facções criminosas e conflitos de terra.
Dados do Painel da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos mostram que o total de denúncias relacionadas à liberdade de religião e crença recebidas pelos canais do governo no 1º semestre (o Disque 100 e o Ligue 180) mais que dobrou em quatro anos.
De janeiro a junho, foram 677 denúncias, mais do que o dobro dos 324 relatos recebidos no mesmo período em 2020. Especialistas no tema indicam que a quantidade real de casos de intolerância deve ser maio.
A pesquisa “Respeite o meu terreiro”, publicada no ano passado pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde e o Ilê Omolu Oxum, dá dimensão do cenário de subnotificação. O estudo ouviu 255 comunidades tradicionais de terreiros e verificou que 91,76% das lideranças ouvidas declararam ouvir regularmente seus filhos de santo relatarem terem sido alvo de alguma forma de racismo religioso. Ao mesmo tempo, 45,5% deles não conheciam o canal de denúncias do governo federal.
Os dados do Disque 100 relativos aos primeiros seis meses do ano mostram que São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia concentram o maior número de denúncias relacionadas ao tema: com 162, 134 e 76 casos, respectivamente. Do total de denúncias, cerca de 44,31% das vítimas são negras.
O Ministério da Igualdade Racial (MIR) informou ao Estadão que acompanha diretamente 11 casos de violação de direitos relacionados ao tema neste ano. A pasta não detalhou as ocorrências.
Mãe Bernadete havia entrado em programação de proteção
Desde 2017, Mãe Bernadete estava inserida no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, que fica sob o Ministério dos Direitos Humanos e é executado pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia. A pasta local afirmou que rondas permanentes eram feitas ao redor da casa de Mãe Bernadete. Também diz que há uso de câmeras nessa estratégia, destacando que “a comunidade tem histórico complexo de disputas e conflitos fundiários”.
A pasta afirma ainda que medidas de segurança relacionadas à família de Bernadete estão sendo implementadas, mas são sigilosas. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania não informou quantas lideranças quilombolas estão no programa de proteção.
No Brasil, os casos de intolerância religiosa têm sido associados muitas vezes a facções criminosas. Nesta segunda-feira, 21, o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), chamou atenção para o fato de que esses grupos também podem estar envolvidos no assassinato de Mãe Bernadete.
Coordenadora do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União, Natalia Von Rondow diz que a associação de facções criminosas a casos de intolerância é cada vez mais frequente. “Tenho trabalhado com lideranças de terreiro, especialmente na Baixada Fluminense, e o relato de violência contra esses grupos por parte de organizações criminosas, milícias, é constante.”
Justiça torna réu homem acusado de espancar quilombola até a morte
Na semana passada, a Justiça tornou réu um homem acusado de espancar até a morte um quilombola por intolerância religiosa, em Eldorado Paulista (SP). Segundo o Ministério Público de São Paulo, o denunciado vai responder pelo crime de homicídio com três qualificadoras: motivo fútil, uso de meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Segundo a Promotoria, a vítima foi agredida por tentar convencer o acusado, umbandista, a virar evangélico.
O réu, o monitor ambiental Murilo Muller de Oliveira, teve a prisão preventiva decretada e está preso. Ele nega o crime. Sua defesa entrou com pedido de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ) pedindo que seja libertado. Conforme o advogado João Paulo Pucharelli Valsani, a prisão foi decretada sem levar em conta as provas dos autos.
O quilombola Michael Ribeiro dos Santos, de 18 anos, foi encontrado morto no dia 27 de junho deste ano. Segundo o MP, o acusado ministrava cursos de monitoria ambiental e a vítima era seu aluno.
Após ser convidado a jantar na casa do monitor, Michael começou a falar sobre sua fé, fato que causou irritação no homem. “Movido por intolerância, o acusado passou a atacar o jovem a socos, cotoveladas e joelhadas, aplicando nele um golpe conhecido como guilhotina (estrangulamento)”, diz a Promotoria na acusação.
Lei contra intolerância religiosa ficou mais dura
Ela destaca que é necessário aprimorar os canais de denúncia, qualificar o atendimento em delegacias especializadas e fazer com que esses casos sejam efetivamente punidos. Em janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou lei que endureceu as penas para crimes de intolerância religiosa.
Com a medida, quem tenta impedir ou usa violência contra manifestações ou práticas religiosas pode receber pena de 2 a 5 anos, que pode ser elevada a depender do número de criminosos que cometerem o ato. Antes, a pena era de um a três anos.
Além da questão legislativa, lideranças afirmam que é preciso criar uma política nacional de enfrentamento à intolerância religiosa. Segundo o babalaô Ivanir dos Santos, professor doutor em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a cultura africana também deve estar nas escolas para criar gerações que não pratiquem o preconceito religioso.
Ele defende ainda que lideranças de outras religiões se engajem no combate à intolerância, sobretudo pastores evangélicos, que tem grande alcance e capilaridade. “Uma coisa é fomentar diversidade religiosa, outra é combater a intolerância. Em 2008, solicitamos que o governo fizesse um plano nacional de combate à intolerância religiosa, mas ele nunca foi elaborado e implementado”, diz.
Em março, o Ministério da Igualdade Racial criou um grupo de trabalho para desenhar o Programa de Enfrentamento do Racismo Religioso e Redução da Violência e Discriminação contra Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Povos de Terreiros no Brasil. Segundo a pasta, a intenção é garantir que as tradições religiosas sejam preservadas.
Em nota, o ministério diz ser “importante considerar a necessidade de avaliar a efetividade da atual legislação de enfrentamento ao racismo religioso e de garantia da liberdade religiosa.” A pasta acrescenta que ainda lançará editais este ano de fomento à cultura, economia de axé e a agroecologia como proposta de fortalecimento e o Encontro Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Povos de Terreiros.
Já o Ministério da Educação (MEC) iniciou 15 cursos de formação de professores do ensino básico sobre temas ligados a relações étnico-raciais, ministrados por universidades ou pela plataforma Avamec, com aulas online.
Segundo a diretora de Políticas de Educação Étnico-Racial e Educação Escolar Quilombola, Lucimar Dias, após o primeiro estágio da formação, a ideia é abordar a cultura africana e afro-americana nos livros didáticos.
De acordo com ela, “a lei que implementou esses conteúdos nas escolas não chegou no patamar que esperamos”. Quando se conhece a cultura, diz Lucimar, “a gente tende a respeitar mais e isso diminuiria o racismo religioso”.