Depoimento: "Rejeitada em 16 escolas, minha filha PcD passou na primeira fase da Fuvest"
Mãe de uma adolescente com paralisia cerebral grave, Denise Crispim conta a trajetória marcada por "nãos" para Sofia poder estudar
"Tenho 43 anos, moro em São Paulo, trabalho como diretora de marketing e sou mãe solo da Sofia, de 17 anos. Ela é fruto de uma gestação gemelar e nasceu prematura. A irmã faleceu 40 dias depois do parto. Sofia permaneceu durante muito tempo na UTI e sofreu muitas intercorrências, como cinco sepses. Ela teve uma lesão cerebral que a levou a desenvolver uma paralisia cerebral grave com quadriplegia. É uma condição diferente da lesão medular, pos ela consegue mexer as mãos, mas tem menos força, equilíbrio e domínio. A lesão neurológica também causou uma deficiência visual cortical. Ela enxerga, mas com dificuldade. Se há um buraco na calçada, por exemplo, pode ser que ela não consiga ver.
A infância toda de Sofia foi voltada às terapias de reabilitação e às consultas médicas. A educação, para mim, sempre foi um ponto sensível, uma chance de ter justiça social. Eu queria dar o melhor estudo possível para a minha filha, principalmente para ela ter alguma autonomia, vida social e oportunidades de se sustentar no futuro. Porém, como ela havia sofrido uma lesão importante na área de linguagem, o primeiro prognóstico foi de que não poderia ser alfabetizada. Sempre fui teimosa e dizia para quem quisesse ouvir: ela pode, sim!
Conseguir uma creche não foi tão difícil, mas a passagem para a Educação Infantil começou a apresentar os primeiros problemas. Sofia passou a usar cadeira de rodas entre os três e quatro anos de idade e as desculpas que ouvi das escolas nessa época diziam que não havia 'estrutura arquitetônica' para acomodá-la.
Após visitar seis instituições, consegui matriculá-la na Educação Infantil. Ela teve um desempenho ótimo, foi alfabetizada aos cinco anos de idade e fez o papel de oradora da turma. No entanto, o processo de transição para o Ensino Fundamental foi brutal. As negativas eram tão violentas e as respostas tão agressivas que tive de parar de levar a Sofia junto comigo nas visitas. Em uma escola ela precisou fazer uma espécie de provinha para entrar e passou, mas a diretora me ligou e disse: 'Sua filha passou, mas não a quero aqui na escola. Se ela ficar vai ser humilhada, não vai ter assistência para nada e vai acabar pedindo para sair'.
Na época ainda não existia a Lei Brasileira de Inclusão, então esse tipo de recusa não tinha consequências. Outra escola avisou que 'até aceitava' a minha filha, mas cobraria uma taxa de R$ 10 mil reais.
Ao todo, percorri 12 instituições e acabei desistindo de matriculá-la numa escola particular. Eram muitos obstáculos nos forçando a desistir, mas eu jamais pensei em desistir. Acredita que uma escola pediu um comprovante assinado por um médico de que a minha filha NUNCA teria problemas de saúde na escola? Como garantir isso, independentemente ou não das deficiências? Tanto eu quanto a Sofia sentimos o impacto dessas rejeições até hoje. A impressão é que ela tinha sempre que provar que era boa o suficiente para o lugar, sabe?
Na escola pública enfrentamos todo o tipo de dificuldade, pois a estrutura, no Brasil, de modo geral, é precária. Do papel branco até a tinta para a impressão dos materiais nas letras grandes próprias para a Sofia enxergar, tudo era difícil. Não tinha um professor de apoio, faltava material, entre outras questões.
Para matriculá-la no Ensino Médio foi outra batalha, mas a Lei Brasileira de Inclusão já tinha sido aprovada. Então, revisitei as mesmas escolas de antes e, dessa vez, ouvi quatro 'nãos'. A maioria disse que iria tentar acolher a minha filha. Enfim, consegui a escola particular que tanto queria para a Sofia cursar o Fundamental II. Ela sempre foi uma ótima aluna, muito aplicada, e mesmo com a pandemia seu desempenho não foi comprometido. Ela estudou remotamente por um bom tempo, por conta das dificuldades motoras e respiratórias, e em 2021 prestou o Enem para saber como funciona e também testar questões de acessibilidade, como o apoio de uma pessoa leitora para ler as questões para ela.
Ela acabou de concluir o segundo ano do Ensino Médio e decidiu prestar a Fuvest pela mesma razão. Sofia fez a prova para uma vaga em Gestão de Políticas Públicas, sem grandes expectativas, e ficou muito contente em passar para a segunda fase.
(Sofia entra na conversa e diz: "Fiquei feliz e muito surpresa, não achava que ia passar. Devo prestar novamente em 2023").
Minha filha passou para a segunda fase da FUVEST. A menina com deficiência grave, recusada por 16 escolas. Meu orgulho hoje não cabe em palavras!
— Denise Crispim (@denisecrispim) December 14, 2022
Fiquei tão feliz que decidi compartilhar no Twitter que, após ser recusada 16 vezes por escolas, minha filha tinha sido aprovada para a segunda fase na Fuvest. Meu tuíte viralizou e recebi comentários de todo o tipo. Minha intenção foi mostrar que ninguém tem o direito de duvidar de uma pessoa com deficiência. Não se trata de meritocracia. Minha filha conseguiu esse êxito, mesmo sem poder cursar agora, mas quantos jovens ficaram e ficam pelo caminho? Não é questão de se dedicar ou não, mas de mudar um sistema que não permite o acesso. Essa desigualdade de condições é desumana. Nenhuma pessoa com deficência deveria se cansar, como a minha filha se cansou, de provar que merece estudar."