Diversidade para iniciantes: 8 questões para entender o tema
Especialistas de grandes empresas tiram dúvidas ainda comuns no mercado de trabalho
Quando o assunto é diversidade e inclusão no mercado de trabalho, dúvidas ainda são frequentes. Embora o tema tenha crescido nos últimos anos e esteja presente na agenda de grandes empresas no mundo todo, é comum haver desconfiança, repetição de clichês e constrangimento ao se falar do assunto. Tem quem acredite que, por uma empresa promover processos seletivos para negros ou vagas de liderança para mulheres, por exemplo, ela abre mão da competência do profissional.
Como questões como essas abundam nas conversas entre colegas e nas redes sociais, convidamos especialistas de diversidade e inclusão (D&I), com diferentes trajetórias em multinacionais e consultorias, para ajudá-lo a navegar sobre o tema, eliminar falsas associações do seu vocabulário e não correr o risco de passar vergonha durante uma reunião de trabalho.
Antes de tudo, é preciso entender que o tema está nas agendas de corporações há alguns anos, mas ganhou força em 2020, com a morte de George Floyd nos Estados Unidos. Há diferentes níveis de maturidade entre as organizações, desde aquelas que estão começando a refletir sobre o assunto até as que já possuem políticas de diversidade, com programas de estágio para grupos minorizados.
Os portes e indústrias de atuação também são variados, e vão desde Magazine Luiza, Nestlé e Coca-Cola (entre as 47 signatárias do Movimento pela Equidade Racial, por exemplo) até GPA e WMcCann (que se unem a mais de 50 organizações na Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial). O assunto ainda tem motivado a criação de novos negócios, como consultorias e empresas que capacitam profissionais.
As razões pelas quais as empresas resolveram investir em diversidade passam pela preocupação com o social (o S do guarda-chuva ESG), pelo zelo com a própria imagem no mercado, e pelo foco na inovação e no lucro.
Citado constantemente por especialistas da área, relatório de 2020 da McKinsey aponta que as empresas que veem a diversidade como parte da estratégia do negócio têm mais probabilidade de superar a performance de seus pares. Mas como? Se por um lado no ambiente diverso os funcionários se sentem livres para ser quem são e assim criar ideias e produtos inovadores, por outro lado consumidores se veem naqueles produtos e a sociedade reconhece o valor da marca que se preocupa com questões sociais.
Para não restar dúvidas sobre o tema, nos ajudam nessa missão: Deives Rezende Filho (ex-ombudsman do Itaú e fundador da Condurú Consultoria), Tamara Braga (especialista em Inclusão & Diversidade do Grupo Heineken), Daniele Botaro (líder de Diversidade e Inclusão da Oracle América Latina), Luiz Gustavo Lo-Buono (criador da Pulsos Consultoria) e Jaque Santos (líder de Diversidade e Inclusão na Suno United Creators).
1. Por que contratar profissionais com foco na diversidade?
Deives Rezende Filho: Justiça e bom senso. Quantos negros vemos em cargos na alta gestão das empresas? Quantas mulheres brancas ou negras conhecemos como cientistas, juízas, desembargadoras, ministras? Quantas pessoas com deficiência são CEOs? Precisamos, ao lado da justiça e do bom senso, incluir o respeito - e uma palavra que resume tudo isso: diversidade.
As empresas precisam ser diversas porque é um imperativo moral. Se não fizerem isso de forma genuína e o fizerem só da boca para fora (o chamado "diversity washing"), precisarão correr para reparar crises que chegarão mais cedo ou mais tarde. Por que esperarmos por uma crise que pode prejudicar a reputação que levou décadas para ser construída?
O mais importante da diversidade genuína é trazer a criatividade, a crítica. É "ganhar mais dinheiro", sim. Não é proibido isso. A diversidade traz retornos financeiros comprovados. Portanto, a empresa que contrata mulheres, negros, gays, lésbicas, gordos, maduros, pessoas com deficiência, transexuais e apoia a evolução de todos terá resultados positivos. Não só para essas pessoas, mas para a sociedade toda.
2. Por que ter processos seletivos só para um grupo? Não é privilégio?
Deives Rezende Filho: Isto é o que chamamos de inclusão. A prova pode ser a mesma para todos, mas existe um passo anterior, o início, a largada. Imaginemos uma garota negra da periferia de uma grande cidade. Muito provavelmente teve dificuldade na formação escolar, alimentação inadequada, falta de acesso à internet, de um computador razoável, e muitas vezes precisou trabalhar para ajudar a família. Portanto, existe um atraso na evolução dela. Existe uma "dívida" que a sociedade tem com ela.
Se a largada é dada em condições desiguais, já sabemos como será o final. Ela ficará para trás e os mais preparados, ou que não passaram por dificuldades como ela, chegarão na frente com muita vantagem.
Este é um dos motivos pelos quais existem processos seletivos para minorias. É uma forma de reduzir a distância no final. Particularmente, entendo que temos, sim, a necessidade de reparar o passado. Contudo, não para uma eternidade e sim por um espaço de tempo, como por exemplo uma geração. Depois, quando todos tiverem as mesmas chances, valerá a força de vontade e os resultados de cada profissional.
3. Processos seletivos desse tipo deixam de lado a competência dos candidatos?
Jaque Santos: Quando colocamos a competência como o principal condicionante das contratações, estamos também colocando nossos vieses em primeiro lugar. Quando você escolhe a formação no exterior, o inglês avançado, a experiência de intercâmbio e a pós-graduação, você está escolhendo o padrão de pessoas que têm acesso a esses privilégios, que são em sua grande maioria homens, brancos, heterossexuais, cisgêneros (que se identificam com o gênero atribuído ao nascer) e com um alto poder aquisitivo. Dessa forma, a mesma bolha é retroalimentada, excluindo quem não tem acesso a essas oportunidades.
Os três grupos mais afetados com a exclusão e a sub-representação são o de pessoas negras, pessoas trans e pessoas com deficiência. Por que essas pessoas não estão se formando em grandes universidades, fazendo intercâmbio e aperfeiçoando línguas? Vamos refletir sobre os impactos do racismo, da transfobia e do capacitismo no cotidiano dessas pessoas?
No final, não é sobre baixar a régua de requisitos e agir por caridade, é sobre reconhecer os privilégios que temos e as responsabilidades. Criar oportunidades de desenvolvimento para pessoas negras, pessoas trans e pessoas com deficiência deve ser prioritário nas agendas das organizações, pois é a partir da oportunidade que essas pessoas vão sair do anonimato e poderão compartilhar ideias, experiências e análises nos espaços de trabalho e formação.
4. Políticas de diversidade não aumentam a segregação entre funcionários?
Luiz Gustavo Lo-Buono: Existem dois efeitos práticos quando trabalhamos diversidade e inclusão nas empresas. O primeiro é um "despertar de consciência." Quando damos treinamentos sobre vieses inconscientes, letramento racial ou assédio moral, por exemplo, estamos compartilhando conhecimento útil e possivelmente novo para muitas pessoas.
Para aqueles que pertencem aos grupos sociais chamados "diversos", pode existir um processo inevitável de autoconhecimento até então reprimido, um "cair a ficha" de que certas situações discriminatórias vividas por elas têm nome, origem, justificativa e, principalmente, formas de combatê-las.
Por outro lado, para as pessoas que integram os grupos estruturalmente vantajosos (como homens aprendendo sobre machismo e misoginia), esse "despertar" também pode acontecer. A diferença é o que se faz com ele. Enquanto alguns se dão conta de que certos comportamentos são errados e decidem agir para mudar, sempre teremos outros com uma postura mais inflexível. O que nos leva para o segundo efeito: a mudança de hábito.
Mudar hábitos não é algo trivial. Não tem receita pronta e dá trabalho. Mas é possível que você já tenha mudado algum hábito ruim em sua vida e tenha se tornado alguém melhor ou mais feliz. Por que não investir nisso quando falamos de diversidade?
Só há duas respostas possíveis: ou você, de fato, não está disposto a investir tempo no aprendizado (porque há muito o que se aprender para reconfigurar séculos de sistemas tão estruturais quando o racismo, o machismo, o capacitismo e a homotransfobia) ou você não está disposto a abrir mão de seus próprios privilégios estruturais.
Afinal, quando você aprende que o fato de você preferir contratar alguém do mesmo gênero ou orientação sexual que você é um comportamento enviesado, preconceituoso e discriminatório, no limite, você se dá conta de que precisará fazer algo a respeito disso. Portanto, a percepção de que diversidade e inclusão "atrapalham a harmonia" entre os funcionários é uma crença que diz mais respeito a quem fala isso.
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5. Faz sentido falar em diversidade num país tão diverso como o Brasil?
Luiz Gustavo Lo-Buono: De fato, o Brasil é um país rico em diversidade. Mas a ideia de que temos braços abertos a essa diversidade é, possivelmente, a maior fake news do nosso passado recente. E essa história, tão replicada no nosso cotidiano, tem nome: é o mito da democracia racial.
O mito da democracia racial surge na década de 1930, quando intelectuais e pensadores da época buscaram construir uma narrativa que explicasse o que significava ser brasileiro. De forma simplificada, esta ideia afirmava haver uma total harmonia entre as raças que constituíam a sociedade brasileira (os brancos europeus, os negros africanos e os indígenas nativos). Ela pregava que todos estes grupos coexistiam em pé de igualdade, numa democracia plena de direitos a todos e todas.
Mas não apenas isso não era uma verdade em 1930 como ainda não é. Dados comprovam que isto é um mito: em 2019, 77% das vítimas de homicídio no Brasil foram pessoas negras. Das pessoas presas no País, 2 a cada 3 são negras. O desemprego entre pessoas negras foi 71% maior que entre pessoas brancas no ano de 2020 (o maior número desde 2012).
Pessoas brancas têm uma média de renda mensal que chega quase ao dobro da média de renda mensal de pessoas negras - sendo que homens brancos do 1% mais rico do Brasil ganham mais que todas as mulheres negras brasileiras juntas. Apenas 24% dos nossos deputados federais são negros, 16% dos nossos magistrados são negros e 5% dos gerentes de grandes empresas são negros.
6. O Brasil também é difícil para pessoas brancas. Por que é diferente?
Daniele Botaro: Todo esforço é válido e deve ser reconhecido. Não se trata de uma competição do que é mais difícil, mas sim de entender que ser uma pessoa negra significa ter um obstáculo a mais, independentemente do ponto de partida de cada pessoa.
Eu tenho uma amiga executiva, que trabalha em uma grande empresa, e que foi acusada de roubo de um telefone de um colega de trabalho. Outra que foi questionada sobre o seu cartão de crédito Platinum. Um executivo negro que foi confundido com um frentista quando deixou o carro para lavar. Algo pelo que eu muito provavelmente, por ser branca, nunca irei passar.
É como se a sociedade dissesse constantemente ao negro "você não pertence a esse lugar", mesmo a pessoa ocupando uma posição de liderança. E é necessário reconhecer que existem alguns privilégios na branquitude para que possamos enfrentar o racismo e genuinamente criar oportunidades justas, para alcançar um patamar em que não sejam necessárias ações afirmativas para nenhum grupo.
7. Orientação sexual, raça e gênero não são temas da vida pessoal e deveriam ficar fora do mercado de trabalho?
Tamara Braga: Toda empresa é composta por pessoas e, quando falamos em diversidade, estamos falando sobre como as pessoas e seus diferentes pontos de vista se sentem pertencidos ao poder contribuir com suas ideias para um ambiente mais inovador, criativo e que, consequentemente, atribui vantagem competitiva à companhia.
Falando em responsabilidade social, para que qualquer empresa espere mais produtividade e motivação, é importante que olhe para o que está oferecendo enquanto empresa e isso envolve um olhar cuidadoso para valorização e capacitação. Além de promover um ambiente mais inclusivo internamente, os consumidores passam a se reconhecer e se conectar com aquela companhia, uma vez que a cultura e os valores que guiam as decisões daquela empresa passam a ter a mesma importância que a qualidade do produto.
Se temos um público diverso como nossos consumidores, como poderíamos nos conectar com suas necessidades sem a representatividade para fazer suas vozes serem ouvidas? A partir daí, passamos a entender que falar sobre inclusão e diversidade é importante não só por espelharmos o recorte brasileiro, mas também como estratégia de negócio. Desta forma, não é possível concordar que assuntos como raça, gênero e sexualidade deveriam ficar fora do mercado de trabalho.
8. Incluir pessoas acima dos 50 anos nas empresas atrapalha a produtividade?
Daniele Botaro: Estudos robustos têm demonstrado que a longevidade contemporânea não está mais conectada com a ideia de aposentadoria, falta de ambição, falta de preparo físico ou disposição de profissionais 50+. Vemos líderes reconhecidos que, aos 70 anos, estão criando startups, ampliando negócios e começando novas carreiras, como, por exemplo, é o caso da tecnologia.
Além disso, é importante considerarmos que há modelos diversos de trabalho, não apenas de longas jornadas de trabalho ou em carreiras lineares. Em um cenário pós-pandêmico, é cada vez mais urgente a discussão sobre modelos de trabalho flexíveis e que valorizam muito a experiência adquirida ao longo dos anos de carreira dos profissionais. Assim, é lucrativo e saudável que possamos criar oportunidades para pessoas em diferentes fases de suas jornadas profissionais.