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Em busca de inclusão: as nuances do espectro autista

Diagnóstico precoce, tratamento multidisciplinar e uma sociedade mais acolhedora podem ajudar as pessoas com TEA a ter uma vida mais autônoma e confortável

9 abr 2022 - 05h10
(atualizado às 15h18)
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Criança com autismo durante evento do Abril Azul: estima-se que 4,8 milhões de brasileiros sejam portadores de TEA
Criança com autismo durante evento do Abril Azul: estima-se que 4,8 milhões de brasileiros sejam portadores de TEA
Foto: Tiago Queiroz / Estadão

Você já conviveu com uma pessoa com autismo? É provável que sim, se considerarmos a incidência do Transtorno do Espectro Autista (TEA), de 1 em cada 44 crianças de 8 anos, de acordo com o relatório apresentado em dezembro pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças, agência do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.

Isso não significa necessariamente que os casos estão crescendo, e sim que as pessoas estão sendo diagnosticadas, ainda que esse quesito seja bastante falho. No Brasil, por exemplo, não há um levantamento - fazendo uma equivalência com os números dos EUA, podemos estimar que seriam 4,8 milhões de brasileiros com TEA. O transtorno reúne desordens do desenvolvimento neurológico que podem manifestar-se em dificuldades na comunicação ou na interação social.

Talvez você não tenha notado que a pessoa que estava com você tinha TEA, já que o transtorno se apresenta em diversos "níveis", considerando o quanto de apoio que a pessoa precisa para realizar as suas tarefas cotidianas. Muitos daqueles que são diagnosticados com "grau de suporte" 1, o que antes era chamado de "autismo leve", passam despercebidos por terem uma vidinha bem "normal": trabalham, estudam, pagam aluguel, se casam.

"O espectro é amplo: inclui desde uma pessoa que tem necessidade de muito apoio, por não conseguir se comunicar, como aquelas que conseguem se comunicar bem e cursa uma faculdade", exemplifica a neuropsicóloga Fabiana Lisboa, especialista em TEA da Rede Apae.

A ciência ainda se empenha para entender melhor o processo que leva ao TEA, mas pesquisas indicaram fatores genéticos e ambientais entre as possíveis causas do transtorno. Por enquanto, não há cura. "É um transtorno de desenvolvimento com o qual a pessoa que tem e a família irá lidar ao longo de toda a vida. Com a correta intervenção, muitas delas podem levar uma vida funcional", afirma a neuropsicóloga Yasmine Martins, assessora científica do projeto Autismo e Realidade, do Instituto Pensi, dedicado desde 2010 a difundir conhecimento e realizar pesquisas sobre o tema.

"Um autista mais severo tem dificuldades maiores e dificilmente vai se comunicar com fluência, mas podemos ajudá-lo a se alimentar sozinho, por exemplo." Segundo ela, com apoio de profissionais da saúde, da educação e da sociedade, a pessoa com TEA pode melhorar a sua autonomia.

Em busca do diagnóstico

Oferecer melhores condições para uma pessoa com TEA, porém, geralmente é um caminho repleto de obstáculos. Primeiro, para receber um diagnóstico, que não chega com um simples exame e que nem sempre se fecha com facilidade - uma bateria de consultas e avaliações clínicas geralmente é necessária. "É um caso clássico: a família demora para ter um diagnóstico porque não encontrou um profissional de saúde capacitado. Há muitos estudos que mostram que se perde muito tempo entre a percepção dos pais e o diagnóstico", diz Yasmine Martins, do Pensi. O diagnóstico precoce é importante para quem tem TEA, pois o tratamento é mais efetivo na primeira infância.

Ivone Satie Ueno, de 48 anos, percebeu algumas dificuldades de desenvolvimento de seu filho Naoki Minati quando ele tinha 1 ano, mas só conseguiu o diagnóstico de TEA aos 3. "Um sinal de alerta acendeu quando ele completou um ano, pois ainda não sabia falar", conta ela. Na escola infantil notaram que ele não atendia aos chamados.

"Ele sempre estava isolado num canto. Quando a gente o chamava, a professora falava que ele era surdo e que ele não ia atender", lamenta. Incomodada com o tratamento recebido por seu filho, ela transferiu Naoki para outra escola e buscou uma psicóloga e uma fonoaudióloga - e, mesmo com o acompanhamento ao longo de um ano, não havia chegado ao diagnóstico de TEA.

Por conta própria, Ivone começou a investigar as possibilidades. "Foi um caminho muito solitário. Na época, não havia muita informação sobre isso, sentia que o tema era um tabu. Até que descobri um grupo de pais e meu horizonte foi se ampliando", diz.

Um foniatra, médico especializado em distúrbios de fala, apontou o TEA de Naoki. Ivone, então, deixou o seu trabalho como arquiteta para dar maior apoio ao filho. "Fiz vários cursos de adaptação de material para conseguir ajudá-lo nos estudos. Os profissionais da área começaram a me indicar para outras famílias, para que eu pudesse vender esses materiais."

Ela avalia que o esforço valeu a pena. "Apesar de ele ainda ter dificuldades em comunicação, socialização e questões sensoriais, aos 12 anos de idade ele tem mais recursos para contornar as dificuldades."

Andrea Werner, com o filho Theo: 'Lugar de autista é em todo lugar', diz ela, fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa
Andrea Werner, com o filho Theo: 'Lugar de autista é em todo lugar', diz ela, fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa
Foto: Tiago Queiroz / Estadão

Na menor suspeita de TEA (veja o quadro sobre sinais de alerta), é importante procurar um psiquiatra ou neurologista, ou um neuropsicólogo, recomenda a psicóloga Maria Clara Nassif de Souza Assis, diretora geral da Cari Psicologia, clínica especializada em TEA, em São Paulo.

Ela explica que, uma vez feito o diagnóstico com o especialista, há uma segunda etapa importante do diagnóstico que verifica o nível de dependência de ajuda de terceiros. "Temos que particularizar esse diagnóstico, pois sabemos que espectro do autismo é um amplo guarda-chuva de características", diz.

Diante desse "desenho" de perfil de desenvolvimento, os profissionais conseguem traçar intervenções coerentes para funções que estão mais fragilizadas. "Avaliamos funções como a linguagem expressiva, linguagem compreensiva, imitação gestual, imitação verbal, atenção compartilhada. Mensurar essas áreas nos permite impulsionar o desenvolvimento do paciente junto à família, à escola ou na clínica", explica a psicóloga.

O medo da família pode ser um obstáculo ao diagnóstico. "Pela nossa experiência, muitos pais demoram para procurar um especialista por receio do que vão ouvir. Eles precisam ser preparados para não ter um choque", diz.

Uma outra perspectiva

Quando recebeu o diagnóstico de TEA do seu filho Theo Bonoli, em 2010, Andrea Werner, de 46 anos, encarou como uma tragédia. "Passei por um sofrimento atroz", conta. "Eu não conseguia ver a deficiência como parte da diversidade humana. Fiquei em paz quando comecei a ver o meu filho como o ser humano que é, uma pessoa que tem o que aprender, mas não precisa ser consertado, curado ou parecido com os outros", diz.

Para se dedicar ao filho, ela largou o emprego e começou o seu blog Lagarta Vira Pupa - nome que faz referência a uma música que Theo gostava. "Rapidamente o blog atraiu muitas mães interessadas em falar do assunto. Nessa época era difícil encontrar na internet conteúdo sobre o assunto", conta. 

Breno, de 10 anos, participa do Pupanique, no Parque da Água Branca, em São Paulo: evento reúne famílias e portadores de TEA
Breno, de 10 anos, participa do Pupanique, no Parque da Água Branca, em São Paulo: evento reúne famílias e portadores de TEA
Foto: Tiago Queiroz / Estadão

Nascia uma ativista da causa: Andrea fundou o Instituto Lagarta Vira Pupa, que oferece suporte emocional, jurídico e material a famílias de pessoas com deficiência - na verdade, a "família" são quase sempre mães. Segundo Andrea, 95% dos seguidores do seu perfil, com 140 mil seguidores, são mulheres. "Sabemos que há um forte abandono paternal quando uma criança tem deficiência ou doença rara", lamenta.

Para marcar o Abril Azul, mês de conscientização e visibilidade do TEA, Andrea organizou o Pupanique, um piquenique realizado no dia 3 de abril no Parque da Água Branca, em São Paulo, para reunir pessoas com deficiência. Na sua segunda edição, contou com 500 participantes. "Em 2014, percebi que as mães não tiravam os seus filhos com TEA de casa por causa do preconceito. Esse evento é para que todos percebem que há lugar para todo mundo, que todo lugar é lugar de autista", defende.

A sociedade não inclui as pessoas com TEA, nem respeita os seus direitos, na visão da professora Amabile Marchi, 38 anos. Autora do canal Autismo ao Pé da Letra, ela é mãe de dois meninos com TEA, Leonardo, de 12 anos, e Vicente, de 4 anos. "Tudo o que envolve o TEA é baseado em luta. Para o diagnóstico, é difícil encontrar um profissional que entenda de autismo. Para ter acesso a uma terapia de qualidade é caro e você precisa brigar com o plano de saúde. As pessoas ainda não entendem que os autistas têm direitos assegurados por lei e têm um preconceito velado. Enfrentar isso é um grande desafio", diz.

Amabile observa que Leonardo tem dificuldade de socialização e Vicente apresenta alteração significativa na fala. Na rotina da família, uma organização meticulosa garante os cuidados dos filhos. Eles frequentam uma clínica que conta com uma equipe multidisciplinar para conduzir o tratamento: psicológico, psicopedagogo, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo. Na escola, eles são acompanhados de perto por um professor de apoio.

"É preciso ter uma rede de apoio forte. Sei que sou privilegiada, pois a maioria das mães de crianças com TEA não têm. Por isso, sempre compartilhamos experiências e desabafamos com pessoas que passam pela mesma vivência", diz.

Os gastos de uma família que tem uma pessoa com TEA geralmente é grande, observa Fernanda Lima, gerente de Pesquisa do Instituto Pensi. "A pessoa que tem TEA geralmente não contribui financeiramente e o tutor pode ter que se dedicar 100% aos cuidados do outro. É um impacto em dobro", analisa.

Exceto nos casos de famílias com poder aquisitivo muito alto, receber um bom tratamento para o TEA é um desafio, afirma Fernanda. "Quem tem plano de saúde pode ter acesso a neuropediatras ou psiquiatras, mas não necessariamente eles estão bem capacitados para lidar com o TEA. E quem precisar recorrer ao sistema público de saúde terá que encarar uma fila só para falar com um pediatra, para seguir por um fluxo que muitas vezes não chega a lugar nenhum."

Para receber tratamento específico para o TEA, muitas famílias contam com o apoio das entidades sem fins lucrativos, caso da Rede Apae, com 2.200 unidades no Brasil que atendem 250 mil pessoas com deficiência intelectual e múltipla. Em maio, o Instituto Pensi pretende inaugurar um centro de referência para diagnóstico precoce e atendimento de crianças com TEA, que contará com especialistas de diversas áreas da saúde. A expectativa é atender gratuitamente mais de 600 crianças por mês. "Queremos que esse projeto inspire outros, já que esse tratamento é capaz de transformar vidas", diz Fernanda.

A importância da inclusão

Como qualquer mãe dedicada, Gabriela Lian, jornalista, de 39 anos, quer ver as filhas Isadora, de 5 anos, e Eleonora, de 3, atingirem o seu melhor potencial. Mas, no caso de Isadora, que tem TEA, Gabriela sabe que o esforço é maior. "Ir a um restaurante ou viajar, que eram coisas que eu adorava fazer antes de ter filhos, virou um transtorno", conta. Por isso, ela escolhe bem os convites que recebe. "Restrinjo o meu convívio social ao nosso universo de confiança, para conviver com pessoas que nos deixem à vontade."

Gabriela vê que a sociedade ainda está pouco preparada para acolher as pessoas com TEA, mas reconhece alguns avanços. Desde janeiro, o Parque da Mônica, em São Paulo, por exemplo, dedica as primeiras horas de funcionamento a visitantes do espectro autista, com menos estímulos sonoros e visuais. Outra iniciativa é a do Vale Sul Shopping, em São José dos Campos (SP), que inaugurou no ano passado uma "sala azul", um ambiente calmo voltado a pessoas com TEA, que podem usá-la em momentos de crise ou descanso. "Esse esforço me faz sentir incluída. Queremos ser aceitos do jeito que somos", diz.

Apesar do forte estigma e preconceito ainda presente na sociedade, há empresas mais abertas à diversidade que contratam pessoas com TEA, observa a psiquiatra Daniela Bordini, coordenadora do Ambulatório de Cognição Social da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

"Empresas multinacionais, especialmente as da área de tecnologia, se interessam em pessoas com TEA, que muitas vezes têm hiperfoco e trabalham compenetradas, sem distração", afirma. "Mas, para receber essas pessoas, é preciso fazer adaptações. Uma pessoa com TEA pode ter sensibilidade a ruídos e luz e não trabalhar bem nesse ambiente", exemplifica.

Na Unifesp, Bordini tem se dedicado a promover a inclusão e a convivência social de adolescentes e adultos com TEA. Ela lidera o projeto Ciclos, que realizou oito grupos de trabalho em 2021 para discutir o tema - que tiveram como fruto oficinas gratuitas oferecidas aos adultos com TEA com atividades de arte, música, teatro e esportes conduzidas por voluntários do Centro Especializado em Transtorno do Espectro Autista, o TEAMM. "Percebi que havia poucos serviços voltados a esse público", diz.

Uma das participantes das oficinas do projeto Ciclos é a pedagoga Gabriela Bartalini Gelbard, de 27 anos. Na oficina que participa, ela é convidada a escrever textos informativos ou criativos. Seu diagnóstico de TEA foi tardio, em novembro do ano passado. Ela conta que os seus sinais do espectro autista sempre foram interpretados de forma errada. "Faço psicoterapia desde os 2 anos e acompanhamento com o psiquiatra desde os 13. Recebi diagnósticos de TOC, transtorno de ansiedade, síndrome do pânico, depressão, mas nada disso explicava aquilo que eu sentia."

Com TEA nível 1 de suporte, o que antes era chamado de "autismo leve", Gabriela diz que tem dificuldade de estabelecer prioridades e, por isso, precisa de ajuda para ir ao mercado e cozinhar, tarefas que são feitas pelo seu marido. Além disso, conta que tem dificuldade de manter amizades. "Eu sinto o mundo de outra forma. O TEA se manifesta em todos os aspectos da minha vida", diz.

Para Gabriela, o diagnóstico a ajudou a lidar com as suas dificuldades. "Tenho me cobrado menos, respeitado os meus limites. Antes eu mascarava as minhas características do autismo para não me sentir inadequada e isso trazia problemas de identidade, pois eu precisava criar um personagem, imitar alguém que não era eu", comenta. A pedagoga não se preocupa mais em esconder os movimentos repetitivos. "Essa expressão do meu corpo é importante para me regular e não escondo mais. Isso mudou minha qualidade de vida, pois posso ser eu mesma. Dá uma sensação de alívio, pois não caibo mais no rótulo de preguiçosa, desleixada e desatenta."

Assim como Gabriela, o jornalista Tiago Abreu, de 26 anos, recebeu o diagnóstico de TEA tardiamente, quando tinha 19 anos, depois de 2 anos de investigações. Ele é um dos fundadores do podcast Introvertendo, conduzido apenas por pessoas com TEA e focado no tema. Por mês, são feitos mais de 15 mil downloads do Introvertendo. "Por falar do autismo em primeira pessoa, esse podcast ajuda que muitas pessoas se reconheçam", diz. Segundo ele, episódios relacionados ao diagnóstico atraem mais audiência. "Tem muito ouvinte que está na jornada do diagnóstico", observa.

Abreu afirma ter dificuldade de interação social, especialmente com novas pessoas. "Tenho uma interpretação literal do que as pessoas dizem, apesar de ter me desenvolvido nesse aspecto", exemplifica. Mas ele faz questão de enfatizar o lado positivo dessa condição: "Sou organizado e respeito os horários. Estabelecendo uma rotina e cumprindo ela, eu tenho um dia muito satisfatório. Isso é bom."

Sinais de alerta

Alguns pontos de atenção podem indicar TEA. Nenhum deles por si só fecham um diagnóstico, mas servem de alerta - nesse caso, procure um neurologista ou psiquiatra:

  • Baixa interação social: a criança não tem interesse na troca com outras pessoas.
  • Pouco contato visual: a criança não olha os pais nos olhos ou não sustenta o olhar.
  • Dificuldade em atenção compartilhada: perceba se a criança compartilha interesses ou se ela se engaja em brincadeiras quando é convidada a participar.
  • Não há imitação: é esperado que por volta dos oito meses o bebê brinque de imitar o adulto.
  • Não atende quando é chamado pelo nome: há muitos casos em que os pais acham que o problema é auditivo, quando na verdade a criança não está demonstrando interesse na interação social.
  • Demora na fala: entre 1 e 2 anos, é esperado que a criança forme frases, mesmo curtas.
  • Sensibilidade sensorial: a pessoa com TEA pode se incomodar com barulhos altos ou se irritar com o contato físico.
  • Movimentos repetitivos: chacoalhar as mãos, balançar-se para os lados são exemplos de movimentos chamados de "estereotipias", que podem ser sinal de TEA.
Estadão
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