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Empregada doméstica de 82 anos é resgatada após 27 anos de trabalho escravo

Justiça determinou o bloqueio dos bens dos empregadores, um empresário e uma médica de Ribeirão Preto, no interior de SP

8 dez 2022 - 14h43
(atualizado às 14h58)
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SOROCABA - Uma mulher de 82 anos, negra e analfabeta, foi resgatada depois de permanecer 27 anos trabalhando para a mesma família em condições análogas à escravidão, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. A operação de resgate, realizada no final de outubro, foi divulgada nesta quarta-feira, 7, depois que a Justiça determinou o bloqueio dos bens dos empregadores, um empresário e uma médica, no valor de R$ 815 mil.

Idosa de 82 anos foi resgatada após trabalhar 27 anos sem salário, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
Idosa de 82 anos foi resgatada após trabalhar 27 anos sem salário, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
Foto: MPT/Divulgação / Estadão

Conforme o Ministério Público do Trabalho (MPT), a idosa permaneceu todo esse tempo sem receber salários e sem gozar de férias ou folgas. No inquérito civil que apura o caso, ficou demonstrado que a patroa enganava a vítima, dizendo estar "guardando o dinheiro" devido à empregada para juntar o suficiente para a compra de uma casa para ela.

A idosa foi resgatada depois que uma denúncia anônima mobilizou as equipes do MPT, do Ministério do Trabalho e Previdência Social e da Polícia Militar. A vítima foi encontrada no endereço dos patrões, em condições precárias de acomodação e de trabalho. Apesar da idade, a mulher fazia todos os trabalhos domésticos da casa.

Indagada sobre os salários, ela disse que "não conhecia dinheiro" e que os patrões enviavam cerca de R$ 100 todos os meses para seu irmão, que reside na cidade de Jardinópolis. Embora fosse beneficiária de uma pensão da Previdência Social devido à idade avançada, a empregada não tinha acesso ao cartão de saque, que ficava em posse da patroa. Os empregadores não apresentaram recibos ou qualquer prova de pagamentos feitos à doméstica.

Segundo a auditora fiscal do trabalho Jamile Freitas Virginio, a empregadora alegou que usava o dinheiro para comprar os gêneros de primeira necessidade destinados à empregada. "Salário, ela nunca recebeu. Ela tinha o grande sonho de ter uma recompensa por todos esses anos de trabalho e ela expressava essa crença muito forte de que receberia uma casa da empregadora", disse.

A vítima contou que começou a trabalhar como doméstica ainda criança, na casa de outra família, sendo "cedida" para os atuais empregadores após o falecimento da antiga patroa. "Sem estudos, sem amigos ou relacionamentos amorosos, ela se submeteu a tal situação de trabalho por ser extremamente vulnerável. Mulher, negra, de origem humilde, analfabeta, ela mais uma vez evidencia a sobreposição de opressões e discriminações existentes em nossa sociedade", afirmou a auditora.

Já o procurador Henrique Correia lamentou que tantos anos tenham se passado sem que a situação de exploração fosse descoberta pela comunidade que rodeava a família. "Além da ausência de remuneração, não havia controle de ponto, nem folgas semanais, sem qualquer controle do quanto recebia, com qual periodicidade, ou se recebia efetivamente algo."

Idosa de 82 anos foi resgatada após trabalhar 27 anos sem salário, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
Idosa de 82 anos foi resgatada após trabalhar 27 anos sem salário, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
Foto: MPT/Divulgação / Estadão

Fuga

Durante a inspeção, segundo o relatório, a empregadora tentou fugir da residência, levando a empregada, mas foi detida pela Polícia Militar. Ela ainda dificultou a identificação da trabalhadora, tentando impedir que entregasse aos fiscais os documentos pessoais. Em diversos momentos da inspeção, a empregada demonstrou submissão, atendendo às ordens da mulher e acenando a cabeça em concordância com o que ela dizia.

Mesmo com a idade avançada, a doméstica disse que continuaria trabalhando "até ganhar uma casinha". Conforme Jamile, nos casos de resgate de trabalho escravo doméstico, em geral a pessoa começou a trabalhar muito cedo e se sente parte da família que a emprega sem pagar seus direitos.

"Essa relação acaba se misturando com os sentimentos e cria-se ali uma relação de afeto constituída com base na desigualdade, em que um parece ser quem provê tudo ao outro, que é necessitado, quando na verdade, existe uma prestação de serviços que deveria ser remunerada de maneira correta", disse.

A partir do resgate por condições análogas à escravidão pelos auditores fiscais do Ministério do Trabalho, a doméstica tem direito ao seguro-desemprego e às verbas rescisórias. A vítima foi encaminhada à Defensoria Pública da União (DPU). Os empregadores podem ser incluídos na "lista suja" do trabalho escravo. "Pensa-se que o trabalho escravo é algo que acontece nos rincões isolados do País, mas no Estado mais rico da nação isso também acontece, e dentro das nossas casas. Muitas vezes, sob olhares omissos e contemplativos, que concordam com essa 'normalidade' do trabalho escravo doméstico", disse a auditora.

De acordo com o MPT, a doméstica resgatada foi levada para a casa do irmão, em Jardinópolis. Os familiares que a acolheram alegaram desconhecer a real situação do trabalho dela. A idosa aceitou atendimento psicológico e será acompanhada por um terapeuta. Os nomes dos empregadores não foram divulgados, já que os processos relativos ao caso tramitam em sigilo. A falta de identificação impediu que a reportagem conseguisse contato com a defesa deles.

Estadão
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