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Equador: Movimento antigênero se infiltra nas decisões políticas

Clínicas clandestinas oferecem terapia de conversão sexual e de identidade

31 jul 2023 - 16h49
(atualizado em 1/8/2023 às 08h44)
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Karlina Quiroz vestia uma camiseta, shorts esportivos e tênis. Mal tinha saído de casa para ir às compras. "Olá, Karlina", diz-lhe uma voz familiar. É Miguel, um vizinho do seu antigo bairro. Ao seu lado, dois outros homens obrigam-na a entrar num carro. Algemaram-na. Um deles aperta-lhe o pescoço. "O que há com você?", grita Karlina. "Estamos aqui por ordem do seu irmão", respondeu o vizinho.

Esta investigação jornalística transfronteiriça é uma parceria da revista AzMina com os veículos Edición Cientonce (Equador), Manifiesta e Andariegas (Colômbia). Leia outras reportagens da série:

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Brasil: Como funciona o movimento que propaga o ódio às feministas?

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Em julho de 2021, Karlina foi internada em "Entrenados Para Ser Libres", um centro que oferece supostas terapias para reverter a orientação sexual ou a identidade de gênero. Ela é uma mulher trans, de 54 anos, chefe de cozinha na cidade de Chone, a terceira mais populosa de Manabí, província costeira do Equador. A região é historicamente marcada pela masculinidade hegemônica, com comportamentos machistas.

Entrenados Para Ser Libres tem mais de 2 mil seguidores na sua página do Facebook, onde se descreve como um "centro de recursos para o tratamento de dependências". Um vídeo publicado em julho de 2020 afirma: “Nós te ajudamos com os seus problemas de dependência e distúrbios comportamentais, venha fazer parte da nossa família!” Os alegados serviços de conversão da orientação sexual e da identidade de gênero são divulgados em segredo: de boca em boca, ou por contatos privados nas redes.

Karlina Quiroz, mulher trans equatoriana / Crédito: Gabriel Tomalá
Karlina Quiroz, mulher trans equatoriana / Crédito: Gabriel Tomalá
Foto: AzMIna

Karlina recebeu um tratamento degradante nesse lugar. "Aqui vais livrar-te da tua mariquice", disseram-lhe na manhã em que foi internada. "Me obrigaram a tomar banho na frente de todo mundo. Me obrigaram a me despir, me disseram para abrir as nádegas, para ficar de quatro. Tinham cerca de 10 homens no quarto", conta. Ela saiu de lá em menos de 24 horas, porque uma prima (a quem chama de "irmã do coração") veio em seu socorro. Não foi sua primeira vez num lugar assim. No ano anterior, em outubro de 2019, a chefe de cozinha sofreu da mesma forma, mas em outro centro e durante três meses. Nessa ocasião, tentou suicidar-se.

Centros ilegais em funcionamento

Em 2020, à medida que o Equador avançava nos direitos das mulheres e de pessoas  LGBTQIAP+, e proibia expressamente essas terapias de conversão no Código Orgânico da Saúde, grupos antidireitos se organizaram em oposição. "Essa disposição permitia que o Ministério da Saúde encerrasse os centros e que as vítimas pudessem iniciar processos judiciais contra os responsáveis", explica a ativista Diane Rodriguez, diretora da Federação Nacional LGBTQIAP+ do Equador.

O Código de Saúde nunca entrou em vigor. Foi aprovado pela Assembleia Nacional em 25 de agosto de 2020, e vetado na íntegra um mês depois pelo ex-presidente Lenín Moreno, devido à pressão de grupos antidireitos. "Havia interesse de alguém nessas clínicas, que são usadas para manter muitas pessoas presas", comenta Karlina Quiroz.

No Equador, as chamadas clínicas de conversão funcionam clandestinamente, de acordo com a Agência para a Garantia da Qualidade dos Serviços de Saúde e Medicina Pré-Paga (ACESS), órgão estatal que monitoriza os estabelecimentos no país. Essas empresas oferecem o serviço ilegal alegando fazer tratamento para pessoas com consumo problemático de álcool e outras drogas.

As terapias de conversão são proibidas nos centros de toxicodependência desde 2012, mas a ACESS pouco ou nada pode fazer, uma vez que a legislação atual não prevê o fechamento desses locais. "Não há como saber se os centros oferecem estas chamadas terapias de conversão. Quando são fechados, é porque não têm licenças ou falta algum documento, não por causa da atividade", explica a ativista Diane Rodriguez.

Foto: AzMina
Foto: AzMina

Campanha para negar direitos

Organizações autodenominadas "pró-vida", como a Frente Nacional por la Familia, Familia Ecuador, Ecuador Provida e Movimiento Libres, iniciaram ações nas redes sociais e mobilizações para exigir o veto do Código de Saúde. No Twitter, espalharam desinformações, alegando que a nova lei abria as portas para a legalização do aborto e da mudança de sexo em menores. Mas não era isso que dizia o documento.

A hashtag #VetoCOS contra o Código Sanitário foi a mais difundida na rede social. O ex-parlamentar Esteban Torres, um dos principais líderes políticos da ofensiva antidireitos na Assembleia nacional entre 2018 e 2023, publicou um vídeo apelando ao veto da lei. "As disposições refletem as piores incidências do estatismo, da ideologia de gênero, do aborto e da liberdade sexual dos menores". O vídeo recebeu mais de 900 retuítes.

As ações de defesa também avançaram. As organizações Ecuador Provida e Frente Nacional por la Familia iniciaram uma coleta de assinaturas numa petição contra o Código de Saúde, e pedindo para validar as terapias de conversão, chamando-as de "terapias profissionais".

Pânico e linguagem sensacionalista

Os eixos narrativos do movimento antidireitos se repetiram: a defesa das crianças contra a alegada doutrinação (progressista ou de esquerda) e a defesa da vida desde a concepção. Esses mesmos padrões foram usados em ações e mobilizações digitais entre 2013 e 2019 para se opor a iniciativas como: a lei que reconhece a identidade de pessoas trans em documentos de identificação, o projeto de Lei Orgânica para a Erradicação da Violência de Gênero contra as Mulheres, a legalização do aborto por estupro e, finalmente, o casamento entre pessoas do mesmo sexo. "As suas mensagens apelam a uma linguagem sensacionalista e geram o pânico", explica o pesquisador Joseph Salazar.

Esta reportagem analisou os perfis antidireitos no Twitter, e Familia Ecuador, uma das organizações contrárias ao Código Sanitário, utilizou a palavra "vida" mais de 500 vezes. Num universo de mais de 2.700 tweets, 72% estão relacionados a questões de gênero, e há um apoio da classe política a essas organizações. Os nomes que mais circularam nas redes da Família Equador foram: Esteban Torres, Héctor Yépez e Lourdes Cuesta, todos ex-parlamentares. "Conseguiram se ligar a setores políticos para influenciar as políticas públicas e as leis", explica Salazar.

No estudo de María Amelia Viteri, professora e autora de Políticas Antigénero en América Latina: Ecuador, são apresentados casos de grupos antidireitos que conseguiram alterações em leis ou decretos. Por exemplo, o projeto da Lei Orgânica para a Erradicação da Violência de Gênero contra as Mulheres foi aprovado em 2018 com o nome de Lei para Prevenir e Erradicar a Violência contra as Mulheres. A palavra gênero foi retirada após pressão de grupos nas redes sociais e mobilizações de rua. Em outro episódio, em setembro de 2019, a Assembleia negou a legalização do aborto por violação (estupro) no Código Penal. Mas, em abril de 2021, a Corte  Constitucional acabou com as penas pela prática.

Da condenação religiosa aos argumentos laicos

Foto: AzMina

Para tentar influenciar as decisões políticas, as estratégias discursivas dos grupos antidireitos recorrem, desde 2013, a "argumentos laicos e até 'científicos' para defender as suas propostas", afirma María Amelia Viteri na sua pesquisa. Deixaram para trás frases como "o aborto é um pecado" ou "Deus criou o homem e a mulher", e passaram a adotar posições supostamente profissionais. "Antes, o discurso antigênero saía das igrejas. Agora, há uma tentativa de profissionalizá-lo, usando mecanismos legais para fazer valer a agenda", explica Joseph Salazar.

Com esta argumentação laica, Mamela Fiallo, uma das figuras antigênero mais proeminentes da  sociedade civil equatoriana, sustenta suas mensagens nas redes sociais ou em intervenções públicas. Participou ativamente do debate da Lei do Aborto por Violação na Assembleia Nacional. "O Equador é signatário do Pacto de San José, que tem hierarquia constitucional. Estabelece três fatos fundamentais que invalidam este projeto de lei: determina que a vida é um direito desde a concepção; proíbe a pena de morte, particularmente para menores; e não permite a transferência de culpa", disse na ocasião, em dezembro de 2021.

Foto: AzMina

Fiallo tem mais de 73.000 seguidores no Twitter. Desde agosto de 2013, a hashtag mais utilizada na sua conta é #LeyAbortistaNo, com mais de 240 tuítes. Dos seus 23.000 posts na plataforma, 34% estão relacionados a questões de gênero. A pessoa mais mencionada por ela é o argentino Agustín Laje, professor conservador e autor de El libro negro de la nueva izquierda (O livro negro da nova esquerda), propagado entre a extrema-direita latino-americana.

Há outros porta-vozes do grupo, como Cristina Franco e Cristina Valverde, que se apresentam como advogadas, e Martha Villafuerte, diretora da Familia Ecuador. Em junho de 2023, Martha participou da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) como parte da delegação de observação da América Latina. No site da Familia Ecuador, ela se apresenta como especialista em comunicação estratégica, com estudos em bioética sobre questões de aborto.

Vulnerável à violência

Os discursos não são isentos de violência. Mamela Fiallo e Martha Villafuerte têm defendido publicamente que mulheres trans não são mulheres sob argumentos biologicistas. Para o ativista Danilo Manzano, diretor da organização Diálogo Diverso, as ações dos grupos autodenominados pró-vida são premeditadas e geram uma rejeição à diversidade de gênero.

No Equador, mulheres trans como Karlina Quiroz são mais vulneráveis. Em 2022, foram registrados 25 assassinatos de pessoas LGBTQIAP+; 17 eram mulheres trans, de acordo com o relatório Runa Sipiy (termo para assassinatos), elaborado pela Associação Silueta X. Esse é um dos poucos dados sobre violência contra pessoas diversas, pois o Ministério Público não tem registros separados por identidade de gênero e orientação sexual.

A justiça é lenta, e mais lenta ainda no campo dos direitos das mulheres e pessoas LGBTQIAP+. Karlina apresentou uma queixa por crime de ódio em agosto de 2021 contra o irmão dela. Só dois anos depois, em 20 de junho de 2023, o Ministério Público ofereceu denúncia contra ele. 

Uma luta, Karlina já ganhou: enfrentou a própria família e a transfobia. "Não me calei mais! Denunciei, mesmo à custa da minha vida. Hoje estou aqui, amanhã posso não estar, mas saio com a satisfação de não ter permitido que eu e os outros continuássemos a ser atropelados”.

*A Edición Cientonce, veículo responsável por essa reportagem, entrou em contato com o centro relatado no texto para responder à reclamação de Karlina Quiroz, mas até a publicação deste texto não houve resposta.

Clique aqui e acesse a reportagem original.

AzMina
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