"Eu sempre fui uma diva trágica, mas minha tragédia era ser um menino", diz Filipe Catto
Cantora se prepara para lançar disco homenageando Gal Costa e fala com exclusividade para o Terra NÓS sobre carreira e vivências
Anti. Diva. Popular. Essas são as três palavras escolhidas pela cantora Filipe Catto para sua descrição no Instagram e uma síntese da sua personalidade e produção artística.
Aos 35 anos de idade, ela se prepara para o lançamento do disco "Belezas são coisas acesas por dentro: Catto canta Gal" no dia 28 de setembro na Casa Natura Musical, em São Paulo (SP), em que celebra o ícone da música brasileira – mais uma para sua coleção de homenagens, inclusive.
"Eu estava me preparando para gravação do meu disco de inéditas e veio o convite para fazer o [show cantando] Gal. Fiquei com muito medo, achei que não ia dar conta, mas é assim: quando se está com medinho é que tem que fazer mesmo. No fim, ficou lindo. O repertório é impecável, o figurino maravilhoso e a iluminação chiquérrima", revela Filipe.
Recentemente, ela se juntou à Alice Caymmi e Ayrton Montarroyos para cantar Maysa. Ao longo da carreira cantou Gonzaguinha, Dalva de Oliveira, Cauby Peixoto e fez uma longa turnê apresentando o repertório de Cássia Eller.
"Isso é algo do mercado brasileiro, ele sempre foi movido a homenagens. Bethânia grava Dalva de Oliveira até hoje, Caetano faz turnês celebrando outros artistas. Fiz Cássia durante anos, mas nunca quis gravar disco porque a potência estava no palco", relembra.
A homenageada da vez, Gal Costa, chegou a fazer, em 2015, o show "Ela disse-me assim" cantando apenas seu grande ídolo, o gaúcho Lupicínio Rodrigues.
Transgressão de gênero
Foi se debruçando na produção de Gal para o preparo do espetáculo que Filipe conseguiu estar plenamente no palco, empoderada pela musa.
"É meu primeiro projeto que tem uma carga estética erótica muito forte porque sempre foi difícil pra mim por causa das minhas disforias, questão comigo mesmo. Alí, virei Pantera, Vaca Profana", explica apaixonada, fazendo referência às canções icônicas entoadas por Gal.
Disforia, no caso, é o nome dado ao desconforto acentuado que algumas pessoas sentem com seus corpos ou partes do corpo em relação ao seu gênero atribuído no nascimento. Para Filipe, essa disforia estava ligada ao fato de ser lida socialmente "como um homem".
Poética e performática, Filipe inclusive usa o termo "transgressão de gênero" no lugar da comumente chamada transição de gênero, que é quando uma pessoa se entende trans.
"Comecei a vivenciar minha transgressão de gênero no meu segundo álbum. Eu sempre fui uma diva trágica, mas minha tragédia era ser um menino. Adolescente eu era totalmente não binária, mas fui ficando menos espalhafatosa. Se eu soubesse que existia não binariedade com 12, 14 anos eu seria não binária lá já. Na época, eu achava que trans era quem era trans binário, e eu não me sentia dessa forma".
Atendendo pelos pronome ela/dela e elu/delu, Filipe se fortaleceu enquanto uma pessoa não binária, ou seja, uma pessoa que não se identifica com a binariedade de gênero, composta do masculino e do feminino.
Artista LGBTQIA+
Quando se coloca publicamente como uma pessoa trans não binária, o resultado não poderia ser melhor. "Eu recebi tanto afeto, meu público nunca errou meu pronome, quando falei ela, elu, ninguém nunca errou", relembra.
No entanto, existe um lugar onde Filipe e sua produção são colocadas que gera um certo conflito: a de artista LGBTQIA+. "Somos sobretudo artistas. A Cássia Eller era uma roqueira, a Gal uma cantora de MPB. Eu, hoje, sou colocada só em listas de artistas LGBTQIAPN+ sem nenhum critério de produção", desabafa.
Mas ser colocada em uma caixa não significa levantar bandeiras. "Eu sou uma artista LGBTQIAPN+, sou militante e não aguento mais esse lugar de cota: faz um festival e tem que ter um artista LGBTQIAPN+. Tem tantos de nós que faz um som foda", completa.
Filipe tampouco tem expectativa de se tornar uma artista 'mainstream', ou seja, uma artista mais comercial. "A música brasileira é feita por nós, a cultura brasileira é feita por nós. Não existe jornalismo, moda, cinema sem LGBTQIAPN+. A gente movimenta e sinto que, muitas vezes, a gente movimenta para os héteros".
"Ser uma artista LGBT do Brasil é f*da porque existe um público muito f*da que ama a gente. Na pandemia, tive essa lição, do tanto que eu fui acarinhada, abraçada. Vi que não estava sozinha e que em todo bairro, toda cidade tem uma sapatão, tem uma bichinha, tem uma travesti e são essas pessoas que quero impactar com minha verdade", finaliza com toda sua potência.