Exclusivo: em 322 municípios brasileiros, todas as vítimas da polícia são pessoas negras
Recife, capital de Pernambuco, e Barreiras, no Oeste da Bahia, são as cidades com maior número de casos; os dados foram obtidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)
Em 322 municípios brasileiros, todas as vítimas de Morte em Decorrência de Intervenção Policial (MDIP) foram pessoas negras, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
As cidades de Recife, capital do estado de Pernambuco, e Barreiras, no interior da Bahia, registraram 14 vítimas de MDIP. Os municípios de Santana, no Amapá, e Vitória, capital do Espírito Santo, contabilizaram 12 e 9 casos, respectivamente. Em outras capitais, como Boa Vista, em Roraima, e Rio Branco, no Acre, pessoas negras perderam as vidas por ações da polícia em 7 e 6 oportunidades.
Dennis Pacheco, pesquisador do FBSP, acredita que os números comprovam a seletividade racial existente no Brasil e questiona o papel das corporações policiais para redução desses indicadores.
"As corporações pouco ou nada falam para seus próprios integrantes sobre seu racismo. Diz-se que o negro morre por muitos motivos, sem que as polícias ou os setores da sociedade que demandam que elas nos matem, assumam a responsabilidade que possuem por nos selecionar ativamente, e cada vez mais, como alvo", afirma.
Os dados utilizados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicação do órgão feita com base em dados das secretarias estaduais de segurança pública. Os números apontam para 47.503 homicídios em 2021, com 77,9% de vítimas negras. O levantamento também indicou para 6.145 MDIP no país, e 84,1% das vítimas são pessoas negras.
Desse total de 322 cidades com exclusividade de vítimas negras, em 214 municípios houve um único caso ao longo de 2021. Os dados não consideram os municípios dos estados de Goiás, que não apresentou os números detalhados de mortes decorrentes de intervenções policiais, e o Ceará, em que a base não tem os dados de MDIP por município. O IBGE trabalha com a existência de 5.570 cidades em todo o país. Desconsiderando os municípios de Goiás, com 246 cidades, e o Ceará, com 184, o estudo apurou informações em 5.140 municípios.
O levantamento mostra que em 926 municípios houve casos de mortes causadas por agentes de segurança, em 597 houve ao menos uma pessoa negra vitimada, e em 322 cidades todas as vítimas eram negras.
Dennis Pacheco acredita que existem diagnósticos sobre a segurança pública no Brasil e que há falta interesse político em reduzir esses indicadores. Para ele, o novo presidente eleito, Lula, terá que se comprometer com a redução da violência.
"O papel do governo federal recentemente eleito é se comprometer definitiva e intensamente com o reconhecimento do racismo e a responsabilização dos que nos impossibilitam de acessar direitos, inclusive o direito à vida. A implementação dessas transformações, demanda coordenar e articular esforços, promover e estimular políticas públicas inclusivas e focalizadas naqueles que são os mais vulneráveis à violência letal, especialmente, àquela promovida por agentes do Estado".
Caso Victor Kawan
Victor Kawan Souza da Silva, de 17 anos, foi uma das vítimas de Morte em Decorrência de Intervenção Policial em Pernambuco. O jovem negro foi morto no dia 11 de dezembro de 2021 no bairro de Sítio dos Pintos, Zona Norte do Recife, quando estava na garupa da moto que o amigo Wendel Wilker Alves dos Santos pilotava.
A família conta que eles iam em direção a uma farmácia, onde Wendel compraria remédios para a mãe. Durante o percurso, os policiais teriam pedido para que a moto fosse parada, mas o motociclista não teria obedecido por não ter carteira de habilitação e porque o adolescente estava sem capacete no momento.
Em depoimento, os policiais afirmaram que eles teriam recebido denúncias de que uma dupla de rapazes estaria praticando assaltos em uma motocicleta. Durante a diligência, os agentes teriam identificado os suspeitos, que, ao perceberem a presença do efetivo, teriam disparado tiros contra eles. Em seguida, uma troca de tiros teria acontecido.
Contudo, as investigações da Polícia Civil de Pernambuco (PCPE) desmentiram a versão policial. Câmeras de segurança e testemunhas que presenciaram a ação da PMPE afirmaram que, na época do ocorrido, vários tiros foram disparados depois que os agentes começaram a perseguir os jovens, que estavam desarmados.
Victor Kawan terminou atingido no peito. Ele chegou a ser socorrido para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), mas não resistiu ao ferimento e morreu no local. Wendel dos Santos não se feriu.
"Victor Kawan era um menino de coração muito bom, sorridente, trabalhador, que tinha tudo pela frente, mas teve a vida tirada de uma forma brutal", disse o pai de Victor Kawan, José Luiz Amâncio, em recente conversa com a Alma Preta Jornalismo.
Após 11 meses do assasssinato do adolescente, o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) expediu, no último dia 28 de outubro, os mandados de prisão preventiva contra os dois policiais militares acusados a pedido do Ministério Público.
No dia 7 de outubro, os cabos José Monteiro Maciel de Lima e Clezia Patrícia de Souza Silva se apresentaram ao 11º Batalhão da PM e foram encaminhados ao Centro de Reeducação da Polícia Militar (Creed), em Abreu e Lima, onde cumprem a pena.
Posicionamento
A Alma Preta Jornalismo entrou em contato com a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco (SDS-PE), que confirmou os números do levantamento feito pelo FBSP para o estado. No total, 105 pessoas morreram em decorrência de confronto com agentes de segurança pública neste território no ano de 2021.
Além das 14 vítimas negras contabilizadas na capital pernambucana, 6 foram em Paulista, 5 em Jaboatão dos Guararapes, 2 em Olinda, 1 em Abreu e Lima e 1 em Camaragibe. Esses são os municípios mais populosos da Região Metropolitana do Recife (RMR).
Em nota, a SDS-PE informou que Pernambuco "está entre os estados da federação com menor taxa de morte por intervenção policial, segundo a última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. No Nordeste, Pernambuco teve menor índice que o registrado por Bahia, Sergipe, Rio Grande do Norte e Ceará". Segundo o posicionamento do órgão, no estado, "a política de segurança é norteada pelo Pacto pela Vida (PPV), cujo objetivo prioritário é a preservação da vida e da integridade das pessoas. A prioridade da segurança pública do Estado, dessa forma, é a adoção de operações com uso de inteligência policial para redução das chances de confronto armado. Em toda a história do PPV, nenhuma operação de repressão qualificada desencadeada pela Polícia Civil resultou em morte".
A Secretaria disse ainda que "além das diretrizes e metas, as polícias de Pernambuco recebem constante treinamento, capacitação e reciclagem para uma atuação técnica e dentro da legalidade, para preservação de todas as vidas. A efetiva participação da sociedade e de órgãos de controle da atividade policial, dentro da política de segurança, ajuda a Pernambuco a ter uma segurança cada dia mais cidadã".
"A Polícia Militar, por meio de sua Diretoria de Articulação Social e Direitos Humanos, tem fortalecido ações preventivas e de aproximação com a comunidade, caso das patrulhas Maria da Penha, Escolar, do Bairro, Proerd, Sistema Koban de Policiamento Comunitário e outras iniciativas. O corpo de servidores da PMPE e das demais forças estaduais, em sua imensa maioria, é formado por servidores dedicados ao bem-estar social. Em seu dia a dia de trabalho, eles colocam sua vida em risco em prol da população", complementa o posicionamento da SDS-PE.
Por fim, o órgão finalizou dizendo que a Corregedoria segue investigando os casos de MDIP. "Vale ressaltar que o Estado conta com uma Corregedoria Geral de Defesa Social forte e atuante, investigando com rigor todos os casos de morte em decorrência de intervenção policial. Esse trabalho é feito em paralelo à investigação criminal, a cargo da Polícia Civil de Pernambuco. Quando há comprovação de crime e infração disciplinar, o agente público é devidamente responsabilizado nas duas esferas, podendo ser excluído da sua corporação", conclui.
A reportagem também entrou em contato com as secretarias de Segurança Pública dos demais estados citados: Acre, Amapá, Bahia, Espírito Santo e Roraima, para questionar o que os estados têm feito para reduzir a letalidade policial e a letalidade de pessoas negras mortas em decorrência das ações policiais. A equipe também questionou como as secretarias utilizam base de dados para reduzir as mortes em decorrência de intervenção policial, porém não obtivemos retorno até o fechamento da matéria.
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