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Falsos pacientes abordam psicólogas para cometerem violências

Agressores buscam acompanhamento psicológico e fazem perguntas de cunho sexual, pedem nudes, se masturbam.

4 jul 2024 - 14h15
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"Isso aqui tem cara e cheiro de bordel, tem certeza que não estamos em um prostíbulo?", disse um candidato à paciente se referindo ao consultório da psicóloga Lara*. Ele estava fazendo o primeiro contato presencial a fim de iniciar as sessões de terapia. O espaço tinha um sofá grande, poltrona de atendimento, mesa, luminária, espelho e ar-condicionado. Bem diferente de uma casa de prostituição. 

O homem foi indicado por uma conhecida que, dias antes, procurou Lara dizendo que o esposo buscava terapia, mas que só queria ser atendido por uma mulher e presencialmente. Ele pediu para agendar o primeiro encontro às 18h e a psicóloga não viu problemas, afinal o consultório - sublocado, no centro do Rio de Janeiro - funcionava em um prédio com intenso fluxo de pessoas.

Lara teve um pressentimento ruim quando ele chegou. O homem andava devagar e olhava com curiosidade para todos os lados. Na intenção de deixá-lo confortável, Lara seguiu agindo normal, como de costume e, trancou a porta do consultório, e fez as perguntas iniciais. Recebia respostas vagas dele, que estava mais atento a cada centímetro da sala. Até que ele a interrompeu: "Esse sempre foi um consultório de psicologia?".

Enquanto Lara observava que aquele homem estava se colocando cada vez mais próximo dela, de uma maneira intimidadora, ela só conseguia pensar na porta trancada. "Ele começou a falar conteúdos sexuais e sugeriu terapia sexual", conta. Apesar de estar com medo e nervosa, a psicóloga sentou na ponta da poltrona, engrossou a voz e afirmou que aquilo era um consultório de psicologia. "Eu me senti assediada, intimidada e acuada". 

Assédio ou importunação sexual

Situação semelhante aconteceu com a psicóloga Thamires Oliveira Vicente, de 30 anos. Ela estava frente a frente com um homem, de 40 anos, quando ele lhe disse que sentia uma atração muito grande por pés. Era um dia quente no interior de São Paulo, e ela usava uma sandália aberta. Mesmo incomodada, Thamires perguntou quando o fetiche tinha começado. "Eu achei o seu Instagram, vi uma foto em que você usava a mesma sandália que está hoje", falou o homem.

Ele havia procurado Thamires pelo WhatsApp, pedindo para marcar uma consulta no mesmo dia à noite. Por estranhar a urgência e o horário, ela pediu ao marido dela que a esperasse no hall de entrada do edifício. Mas aquela sessão foi reagendada e só ocorreu uma semana depois. O fato é que o homem nunca pretendeu ser um paciente, e ainda pediu para beijar e tocar os pés de Thamires. 

Thamires Oliveira Vicente, especialista em Terapia Cognitiva Comportamental
Thamires Oliveira Vicente, especialista em Terapia Cognitiva Comportamental
Foto: AzMina

Tanto Thamires como Lara se sentiram inseguras mesmo com os agressores saindo da clínica, porque trabalham sozinhas, e não tinham um colega de trabalho para chamar ou um chefe para acionar. "Como a ausência de cobertura nos dedos dos pés podia fazer com que eu me sentisse tão nua?", se pergunta a psicóloga, que diz que se sentiu assediada enquanto trabalhava. 

A palavra assédio é frequentemente usada no senso comum para se referir a diferentes crimes sexuais, mas o Código Penal estabelece características específicas para assédio e importunação sexual. Conforme a legislação brasileira, o assédio sexual compreende superioridade hierárquica - ou "ascendência inerente ao exercício de emprego, cargo ou função" - do assediador em relação à vítima. Enquanto importunação é a prática de ato libidinoso sem o consentimento da outra pessoa. 

Profissão feminina, autônoma e solitária

Conselho Federal de Psicologia (CFP), em 2024, contabilizou 531.299 psicólogos no Brasil. Deste número, 457.612 são mulheres (86%). Podemos afirmar que a psicologia é uma profissão majoritariamente feminina e que tem suas especificidades. Segundo último Censo da Psicologia, de 2022, 35,5% atuam exclusivamente como autônomas(os) e 43,9% das (os) psicólogas (os) que responderam à pesquisa começaram a sua carreira na clínica, área de maior procura. 

Como autônomas, as psicólogas clínicas precisam promover o trabalho, precificar os atendimentos e captar pacientes por conta própria, além disso, atuam em um espaço solitário que se restringe à relação com o paciente. 

A psicóloga Maria Izabel Forte, de 28 anos, não queria trabalhar em clínicas particulares. Então, decidiu fazer um post, usando o tráfego pago no Instagram, para divulgar os atendimentos, com informações sobre como funcionava e um telefone para contato. Algumas horas depois da divulgação, um homem a chamou dizendo que era viúvo há pouco tempo e buscava terapia. 

Maria Izabel de Castro, psicóloga histórico-cultural
Maria Izabel de Castro, psicóloga histórico-cultural
Foto: AzMina

Ele pediu para marcar a sessão para às 22h e sugeriu pagar adiantado sem responder à ficha cadastral. "A conversa terminou com ele me chamando de linda e pedindo para que eu entendesse que ele estava há muito tempo sozinho", conta Maria Izabel. A psicóloga decidiu remover a publicação quando o quinto homem perguntou se ela atendia compulsão sexual. 

Ao compartilhar o episódio com um grupo de amigas, Maria Izabel soube que elas também sofreram esse tipo de situação ao divulgar o próprio trabalho nas redes sociais. Muitas profissionais passaram a segmentar suas divulgações para mulheres. 

"Por ser uma profissão de cuidado e protagonizada por mulheres, não me veio à cabeça a necessidade de proteção", comentou a psicóloga, que decidiu buscar uma clínica particular para trabalhar. 

Foto: AzMina

Falsos pacientes e comportamentos que se repetem  

Apesar dos diferentes métodos usados pelos agressores, alguns comportamentos se repetem. São homens que fingem ser pacientes, se recusam a preencher fichas de cadastro com dados pessoais, querem agendar consultas com urgência e em períodos noturnos. Muitos insistem em fazer chamadas de vídeo antes da primeira sessão justificando que precisam "explicar uma coisa".

A psicóloga Liliany Souza, de 37 anos, de Brasília, foi pioneira em mapear esses comportamentos. Ela fez uma publicação no Instagram com dicas de como evitar situações de assédio e violência durante o exercício da psicologia clínica. O post, que já tem mais de 700 comentários, foi motivado por uma experiência própria. 

Liliany Silva Souza, Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura
Liliany Silva Souza, Mestre e Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura
Foto: AzMina

Em um domingo à noite, ela recebeu uma mensagem no WhatsApp, com a foto de um homem, dizendo que precisava de atendimento com urgência. Recebeu ligações por chamadas de vídeo seguidas de mensagens de texto pedindo que ela atendesse. Desconfiada, Liliany foi firme: "Você deve preencher a ficha de atendimento e eu não preciso que me explique nada antes, qualquer ponto será discutido na sessão."

Quando o sujeito viu que ela não ia atender, começaram as ofensas. "Ele me xingou e disse que eu estava mostrando os meus peitos na internet para me divulgar, além de várias outras coisas vulgares e sexuais", narra. A psicóloga compartilhou no Instagram o que havia acontecido e se assustou com a quantidade de pessoas que disseram já terem sido vítimas também. 

Quem estava do outro lado da tela era um homem de 36 anos, morador de Bom Retiro do Sul (RS), investigado por importunação sexual. "Até a última vez que contei, tinham denúncias de 18 estados brasileiros. Eu mesma já recebi mais de 200 relatos no Instagram contra ele", contou Liliany. 

O cuidado com o outro x relações trabalhistas 

Não é só a solidão da clínica que contribui para casos de assédio, mas também um velho conhecido das mulheres: a ditadura do cuidado. Por ser um lugar de acolhimento e escuta ativa, é comum esquecer que o vínculo entre psicóloga e paciente é uma relação trabalhista que envolve uma parte contratante e outra contratada.

A confusão entre o trabalho formal das psicólogas e uma suposta obrigação social de gênero tem base histórica e acompanha a profissão desde a regulamentação da Psicologia no Brasil, em 1962. A classe média passou a direcionar uma quantidade significativa de suas filhas para o recém-criado curso de psicologia. O lugar da mulher não era mais no lar, exclusivamente, mas em "espaços próximos, nos quais o cuidado, a proteção, a ajuda, o asseio e a organização seriam suas atribuições", aponta o Censo da Psicologia

Fernanda Ribeiro, psicóloga clínica existencialista
Fernanda Ribeiro, psicóloga clínica existencialista
Foto: AzMina

Além de estarem em profissões de cuidado, recebendo salários menores, as mulheres ainda dedicam 9,6 horas a mais aos afazeres domésticos do que os homens. O cuidado é visto como uma obrigação de gênero tanto na esfera profissional como pessoal. Se a mulher é historicamente ensinada que acolher o outro sobrepõe suas necessidades e desejos pessoais, como ela vai identificar uma violência?

Por serem socializadas em uma pretensa profissão feminina desde a faculdade, as profissionais são acompanhadas por uma lógica de submissão, subserviência e cuidado extremo com o outro. "A gente precisa, antes de tudo, se fortalecer enquanto mulheres para também se fortalecer enquanto psicólogas", defende Fernanda Ribeiro, de 29 anos, especialista em psicologia existencialista. 

Após ministrar uma palestra online sobre vício em pornografia, Fernanda foi procurada por um número desconhecido pedindo ajuda e fazendo várias chamadas de vídeo. Ela já tinha ouvido de uma colega que atendeu uma ligação de um possível paciente por vídeo, preocupada de ele estar em uma situação de vulnerabilidade, mas do outro lado da tela tinha um homem se masturbando. "Por já saber dessa história, não atendi a chamada". 

Ambiente acolhedor para quem? 

Quando sofreram violência, Thamires, Lara* e Maria Izabel se consultavam com psicólogos supervisores, responsáveis por fazerem o acompanhamento dos casos clínicos delas, além dos terapeutas individuais. Já em segurança, elas puderam conversar sobre o que aconteceu. Nenhuma delas foi encorajada a denunciar os agressores. 

"No começo achei que a culpa tinha sido minha, que estava exagerando e tinha interpretado tudo de maneira errada. Mas, contando para pessoas próximas, percebi que sofri uma violência", explica Thamires, que fez questão de entrar em contato com algumas psicólogas da sua cidade e alertá-las sobre o que ocorreu com ela. 

Lara, que abre essa reportagem contando que foi importunada pelo marido de uma conhecida, teve muita vontade de falar com ela, mas foi desestimulada pela sua terapeuta. "Ela disse que, pela ética profissional, eu não poderia romper o sigilo e denunciar. Tenho isso engasgado até hoje." Após a violência sofrida, ela decidiu só atender homens por indicação de outro profissional.

A psicologia possui um Código de Ética que garante o sigilo. O texto diz que é dever do psicólogo respeitá-lo "a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade de pessoas, grupos ou organizações a que tenha acesso". Mas também ressalta que em situações previstas em lei ou que gerem conflitos entre as exigências do segredo profissional, que atinja o limite da violência, o psicólogo pode decidir pela quebra do sigilo. 

A relação entre psicólogo e paciente é de trabalho e isso não pode ser perdido de vista. "Isso (de vivenciar violências) é condição de trabalho indigno e a gente não quer que uma colega vivencie essa situação", afirma Alessandra Almeida, psicóloga e representante do Conselho Federal de Psicologia (CFP). O medo de quebrar a ética profissional, ou descrença na Segurança Pública, fizeram com que as mulheres ouvidas por essa reportagem optassem por não denunciar.

Orientações e proteção falha

Questionamos os 24 Conselhos Regionais de Psicologia (CRP) espalhados pelo Brasil sobre o que uma psicóloga deve fazer caso sofra assédio, violência ou importunação sexual no exercício do seu trabalho. Recebemos respostas de apenas dois. 

O CRP do Distrito Federal diz que "é preciso documentar esse assédio de alguma maneira com fotos, vídeos, áudios, conversas, e-mails e até com testemunhas, e, quando a psicóloga estiver com tudo isso em mãos, ela pode entrar em contato com alguma entidade para realizar a denúncia". Eles também possuem um canal em parceria com o sindicato. Pelo telefone (61) 99307-2939, "a psicóloga que está passando por essa violência poderá contar com o apoio e orientações para judicializar o processo, sem que a mesma seja prejudicada."

O CRP de Santa Catarina, diz que a profissional "deve entrar em contato com uma das psicólogas assistentes técnicas do CRP e agendar um atendimento presencial ou on-line" e que "no site todos os contatos estão disponíveis." 

Em âmbito nacional, não há um canal oficial de denúncias, mesmo sendo uma classe com mais de 500 mil psicólogos. "Não temos condição ainda de fazer algo desse tipo. Nossa ação é de articulação", esclarece a conselheira Alessandra Almeida, justificando que "a função legal do CFP é proteger a sociedade da má atuação profissional do psicólogo.". 

O homem denunciado pela psicóloga Liliany, foi acusado formalmente de importunação sexual. À época, o CFP e o CRP de São Paulo, responsáveis por fiscalizar a atuação das profissionais de psicologia, publicaram uma nota de repúdio. Após dois anos do fato, além de cartilhas, palestras e rodas de conversa, nada prático aconteceu. Mas, no Instagram de Liliany, novas mensagens de vítimas relatando assédios cometidos pelo mesmo agressor continuam a chegar. 

*Nome fictício por questões de segurança e solicitação da entrevistada.

Clique aqui para ler o texto original.

AzMina
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