França é o 1º país a incluir direito ao aborto na Constituição
Em decisão inédita, Congresso aprova emenda que assegura na Carta Magna francesa o direito à interrupção da gravidez
A França se tornou nesta segunda-feira (04/03) a primeira nação do mundo a incluir o direito ao aborto em sua Constituição.
As duas casas do Parlamento Francês se reuniram no Palácio de Versalhes para votar a emenda, que necessitava de uma maioria de três quintos dos votos para ser aprovada, após superar a resistência inicial do Senado francês, de tendência conservadora. Na votação desta segunda, foram 780 votos a favor e 72 contra. O resultado foi anunciado sob fortes aplausos.
A garantia constitucional do direito ao aborto - que é legal na França desde 1975 - era uma promessa do presidente francês, Emmanuel Macron, que decidiu adotar a medida após a Suprema Corte dos Estados Unidos reverter em 2022 uma decisão que permitia aos estados americanos decidirem sobre a legalidade do procedimento. "Temos uma dívida moral com as mulheres", disse o primeiro-ministro Gabriel Attal antes da votação.
Em janeiro, a Assembleia Nacional (câmara baixa do Parlamento Francês) aprovou por ampla maioria a inclusão da chamada "liberdade garantida" na Carta Magna do país. Na quarta-feira da semana passada, foi a vez do Senado aprovar a emenda.
Macron elogiou a aprovação pelos senadores e convocou imediatamente a sessão conjunta do Congresso no Palácio de Versalhes. A aprovação, em uma rara sessão conjunta das duas casas do Parlamento, era a última etapa necessária para garantia do direito na Constituição.
Décadas de luta das mulheres
"Jamais poderíamos imaginar que o direito ao aborto estaria um dia escrito na Constituição" disse Claudine Monteil, líder da entidade de defesa dos diretos das mulheres Femmes Monde ("Mundo feminino"). Ela foi uma das primeiras signatárias do chamado Manifesto das 343, uma petição de 1971 assinada por 343 mulheres que admitiram ter realizado abortos de maneira ilegal.
Naquela época, estimava-se que entre 700 mil e 800 mil mulheres realizassem todos os anos abortos ilegais.
A legalização da prática em 1975 foi possível através de uma lei capitaneada pela então ministra da Saúde e ícone dos direitos das mulheres Simone Veil.
Monteil lembrou que, antes mesmo da aprovação, em 1974, outro ícone do feminismo, Simone de Beauvoir, alertara que "uma crise política, econômica ou religiosa" poderia resultar em um retrocesso nos diretos das mulheres.
Dessa forma, segundo a ativista, "a decisão da Suprema Corte dos EUA fez um favor às mulheres do todo o mundo, ao nos acordar".
Ineditismo
Leah Hoctor, do Centro de Direitos Reprodutivos da França, afirmou que o país criou "a primeira provisão constitucional ampla e explícita" sobre a questão, não apenas na Europa, mas no mundo todo. Ela lembrou que o Chile incluiu o direito ao aborto em uma proposta de um novo texto constitucional em 2022, que acabou sendo rejeitado pelos eleitores em referendo.
As legislações de alguns países fazem alusões ao direito. A Constituição de Cuba, por exemplo, assegura o "direito reprodutivo e sexual " das mulheres.
Vários países dos Bálcãs herdaram versões da Constituição da antiga Iugoslávia - Croácia, Sérvia, Bósnia-Herzegóvina, Eslovênia, Macedônia e Montenegro - de 1974, que afirma dá às mulheres o poder de "decidir sobre os direitos do nascimento da criança".
Outros países concedem o direito ao aborto somente em casos específicos.
Apoio popular
A inclusão do aborto na Constituição francesa possui grande apoio entre a população. Uma pesquisa de novembro de 2022 realizada pelo grupo Ifop revelou que 86% dos franceses apoiavam a medida.
A emenda constitucional era apoiada principalmente por políticos de esquerda e centristas. Senadores dos partidos de direita se disseram pressionados para aprovar a medida. Uma senadora chegou a dizer que suas filhas ameaçaram não mais visitá-la nos feriados de Natal caso ela votasse contra.
A última mudança na Constituição francesa ocorreu em 2008, quando parlamentares aprovaram por margem apertada uma série de reformas durante a Presidência de Nicolas Sarkozy, que incluíam o limite de dois mandatos para os presidentes e salvaguardas à liberdade e independência da imprensa.
rc (AFP)