“Fui muito ameaçado quando meu pai me tirou do armário para o Brasil”, diz filho de Mauricio de Sousa
Mauro Sousa foi vítima de homofobia quando o pai publicou uma foto dele com o marido no Instagram, mas desafio o fortaleceu
Mauro e Rafael estavam juntos há 12 anos quando Mauricio de Sousa publicou uma foto junto do casal em suas redes sociais. A legenda não tinha qualquer firula, era prática e descritiva: “Eu, meu filho e meu genro”. Mauro se surpreendeu com a publicação. Sua homossexualidade nunca havia sido questionada pela família, ele sequer precisou anunciar aos seus sobre sua forma de amar. A própria mãe o fez, depois de uma conversa acolhedora.
Logo Mauro conheceu Rafa, e o acolhimento se estendeu a ele de uma forma tão bonita que Mauro achou que estava a salvo. Mas a guarida ficou restrita à casa. Quando Mauricio publicou a foto, seguidores do maior cartunista do país ostensivamente decidiram atacar Mauro, pura e simplesmente por sua sexualidade.
Mauro detalhou com exclusividade ao Terra NÓS o doloroso processo de sair do armário publicamente, para pessoas desconhecidas (muitas delas, criminosas).
“Quando meu pai postou aquela foto, em 2019, recebi uma enxurrada de comentários – dos mais bonitos aos mais feios aos mais horrorosos. Fiquei apavorado porque não tinha passado por isso em casa. A sensação era de que todas aquelas pessoas queriam que eu voltasse para o armário.”
Mauro teve crises de pânico. Sair na rua era aterrorizante; dormir, um tormento. Ele se encolhia na cama, com os braços apertando as pernas contra o tronco fortemente, numa tentativa de abrigar a si mesmo. “Tinha medo o tempo todo. Medo de ser quem eu era, de ser reconhecido na rua. Recebi tudo quanto é tipo de ameaça. Acho importante ressaltar que vivi tudo isso mesmo sendo um cara privilegiado, que tem apoio da família. Foi um processo muito denso, precisei de bastante terapia até chegar onde estou hoje. Sou bem resolvido com tudo que aconteceu, me fortaleceu, sim, mas não desejo isso para ninguém.”
“Me fortaleceu como pessoa, profissional, como gay e ativista. Hoje, sou alguém que tem muita consciência do que fala, alguém cujos principais pilares de vida são abraçar a causa LGBTQIA+ e lutar por ela.”
Mauro é diretor da Mauricio de Sousa produções e está à frente do mais novo espetáculo de 60 anos da Turma da Mônica, que estreia em 1º de julho em São Paulo e no Rio de Janeiro. Vive, atualmente, sua melhor fase profissional e pessoal, que leva como herança a terapia. Não parou a análise. Faz terapia individual e familiar, junto de Rafael, que, segundo ele, segurou a onda e o fortaleceu quando tudo desabou.
O ser gay
Mauro começa a entrevista dizendo que nasceu gay; reitera que não escolheu ser gay nem se transformou em um homem gay durante a vida. “Orientação sexual não é escolha”, ressalta. Ele compreendeu sua orientação sexual aos dez anos, e ele se lembra com clareza desse momento.
Mas desde antes desse momento, Mauro sentia coisas diferentes pelos meninos – sentimentos que ganharam nome quando os hormônios foram ganhando forma. “Lembro de escrever na escrivaninha do meu quarto ‘gay’. Foi a primeira vez que encarei aquela palavra. Mas entrei numa questão que não é biológica, é psicológica: a tentativa de negar minha sexualidade”.
“Era uma confusão que ninguém merece viver. Nenhuma criança deveria passar por isso. O processo de me compreender gay foi muito solitário e doloroso porque, nos anos 1990, as referências de pessoas LGBTQIA+ eram muito estereotipadas. Os gays na tevê eram motivo de chacota, e era assim que eu me sentia: uma piada. Me julgava como algo ruim, tinha vergonha de quem era, vergonha de sentir o que sentia. Se eu tivesse referências melhores, tratadas com respeito, certamente teria sido menos traumático para mim”.
Dos dez aos dezoito anos, Mauro viveu seu processo de descoberta de forma solitária, preenchido por medo, vergonha e conflitos. Beijou um garoto pela primeira vez aos 14 anos, que conheceu em um bate-papo na internet. O encontro dos dois precisava ser num lugar público por questões de segurança, mas estar em lugar público para Mauro era assustador. Ele temia, o tempo todo, ser reconhecido.
Mauricio de Sousa e sua Turma da Mônica são sucesso absoluto. Seus filhos, por osmose, desde pequenos eram sucesso também. Mauro inspirou o personagem Nimbus, o menino tímido que, hoje, zero se assemelha ao homem que Mauro se tornou. A timidez era uma tentativa de esconder quem era, de ser invisível. Ele era um menino afeminado, e sempre que abria a boca perto de outras crianças, era vítima de homofobia – antes mesmo de saber o significado dessa palavra.
“Peguei um táxi e fui até o garoto. Combinamos de nos encontrar na Avenida Paulista, e eu tremia, suava frio. Não tinha medo de ele não ser quem eu pensava, meu medo era que alguém me reconhecesse. A gente ficou. Fui para a casa dele. Foi a primeira vez que beijei outro homem. Na hora, foi bom. Mas quando cheguei em casa e me olhei no espelho, senti nojo de mim mesmo. Lembro de lavar minha boca com sabonete, pensava ‘o que eu fiz, meu Deus?’. Dois homens se beijando, naquela época, era uma monstruosidade. Só que no dia seguinte já quis beijar de novo.”
Quando acordou e sentiu vontade de repetir o beijo, Mauro compreendeu com clareza sua sexualidade, apesar de achar que não poderia compartilhá-la com ninguém. Guardar o segredo sobre si mesmo, entretanto, era denso demais para ele. Decidiu, então, se abrir com seu melhor amigo à época, Leandro. “Quando contei que era gay, ele disse que também era. Isso salvou minha vida. Tive um aliado, e esse aliado era, por sorte, uma pessoa com quem eu já era grudado”, diz.
Leandro e Mauro se firmaram uma dupla inseparável. Começaram a descobrir os espaços destinados ao público LGBTQIA+ em São Paulo – que eram bem mais escassos que hoje. Faziam tudo isso escondido. O primeiro lugar em que Leandro e Mauro foram juntos foi a antiga danceteria Túnel, no centro de São Paulo. “A primeira coisa que vi quando cheguei foi um casal de homens se beijando. Fiquei muito intimidado, apesar de achar lindo. Até então, aquilo, para mim, era proibido. Tinha show de drag queens; pessoas livres circulando ali. Senti que aquele lugar era um espaço seguro para mim”.
Estratégia bem pensada
A danceteria se firmou como refúgio dos amigos. Mas Mauro, ainda adolescente, ainda precisava justificar aos pais aonde ia. Ele criou, então, uma estratégia junto de Leandro. Inventaram que iriam para uma balada hetero na zona sul de São Paulo. Iam até lá, mas não entravam. Pegavam um táxi na porta da balada e voltavam para o centro, para a Túnel. Para voltar, a mesma coisa: viajavam até a Vila Olímpia para, de lá, pegar o táxi até em casa.
Esse procedimento durou três anos. Mauro e Leandro tinham códigos, que usavam quando estavam na frente de outras pessoas e decidiam mudar o rumo do rolê. “Até que uma vez estava na Túnel e um garoto chegou até mim e disse: ‘Acho que conheço seu pai’. Pronto, o mundo acabou para mim ali. Era a pior frase que eu poderia ouvir naquele momento. Fiquei branco, fui embora na hora. Parecia que havia aberto um buraco no chão”, relembra Mauro.
“Só conseguia pensar que iriam contar para o meu pai que eu estava em uma balada gay. Passei três semanas em pleno desespero, achando que a qualquer momento meu pai iria falar comigo sobre isso. Passei essas três semanas sem voltar lá. Quando percebi que ele não tinha falado nada, senti que o perigo havia passado e voltei a ir”, ri.
Confiança inabalável
A relação de confiança entre Mauro e os pais parecia inabalável. Era algo pelo qual Mauricio e a mãe de Mauro, Alice, sempre prezaram, e esse histórico fazia com que o garoto se sentisse culpado por ter que se esconder. Era doloroso, e fingir ser alguém que não era se tornou cansativo demais para aguentar.
Aos dezoito anos, ele decidiu contar à mãe sobre sua sexualidade, momento que idealizou e imaginou por muitos anos. Na imaginação, esse dia chegaria com a mãe aos prantos e ele tentando ser forte. A prática rolou ao contrário. Ele nem precisou dizer nada. Alice disse a frase de alento com que Mauro sempre sonhou: ‘Meu filho, eu sei que você é gay. E eu te amo do mesmo jeito. Quero te ver bem, quero conhecer seu namorado’.
Quem caiu aos prantos foi Mauro ao ouvir o afago da mãe. Nem em seus sonhos mais subjetivos essa reação era possível. Foi ela quem se manteve firme, acolhendo-o. “Depois desse dia, ninguém mais importava. Sabia que, com minha mãe me acolhendo, estava pronto para ser quem eu era sem medo de ser feliz. Minha vida começou a mudar para melhor. Quem falou com meu pai foi ela, e até hoje não sei qual foi a reação dele na hora. Mas ele nunca me desrespeitou, nunca me tratou com preconceito. Nunca senti nada de ruim vindo da minha família. Foi um acalanto”.
Meu primeiro amor
Não demorou muito até que Rafael surgisse na vida de Mauro, como paquera de um paquera. Mauro combinou com o crush de encontrá-lo no aniversário de Tiago Abravanel, em outra balada LGBTQIA+. O paquera, entretanto, foi acompanhado ao aniversário. Mauro ficou frustrado, mas não deixou de notar o boy do boy. “Era o Rafa. E ele era muito gato”, ri.
Os dois se encontraram ocasionalmente em outro bar duas semanas depois. Rafa deu uma piscadinha cafonérrima, e Mauro se derreteu todinho. O match veio, e já se passaram 16 anos. Rafael também trabalha na Mauricio de Sousa produções.
O apoio do marido enquanto o mundo desabava foi imprescindível para que Mauro superasse a homofobia. “Só nos afetou positivamente, nos uniu como casal. Hoje, num relacionamento forte pautado por muita terapia e conversa, o amor se refaz todos os dias".