Garimpo ilegal tomou pistas de pouso de postos de saúde indígena em área Yanomami, diz MPF
MPF mapeou 412 pontos de mineração ilegal no território indígena em 2020; criança foi estuprada e morta no local, segundo denúncia de liderança
Garimpeiros ilegais ocuparam as pistas de pouso dos postos de saúde indígena para receber aviões e helicópteros em apoio à mineração de ouro na Terra Indígena Yanomami, na Amazônia, constaram procuradores da República em visita feita em março à região conhecida como Serra das Surucucus. A inspeção foi realizada após denúncias de graves crimes contra indígenas. Nesta semana, lideranças indígenas denunciaram que garimpeiros estupraram e mataram uma adolescente nesta reserva indígena, onde o Ministério Público Federal (MPF) mapeou 412 pontos de mineração ilegal em 2020.
Em 31 de março, o MPF apresentou à Justiça Federal pedido para obrigar a União a retomar ações de proteção e operações policiais contra o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. A Justiça ainda analisa os pedidos. Nesta quarta-feira, 27, uma equipe do MPF voltou à região para apurar a denúncia de que uma menina Ianomâmi de 12 anos foi estuprada e morta pelos garimpeiros ilegais.
Conforme o MPF, isoladas do contato com a sociedade, as comunidades indígenas estão cada vez mais próximas do garimpo e não podem usufruir de seu ambiente tradicional, completamente degradado pelo desmate e poluição dos rios, inclusive com mercúrio. Só no garimpo instalado na comunidade de Homoxi são mais de mil garimpeiros. Nessa região, um posto de saúde foi fechado por causa do risco de desabamento causado por uma cratera aberta para a extração de ouro - os garimpeiros tomaram a pista de pouso.
Na ação protocolada com urgência, o MPF pede que o governo federal coordene o planejamento de novas operações de repressão contra os crimes socioambientais, como o garimpo, e que as equipes permaneçam na região. O MPF conclui que as operações executadas em 2021 pelas forças de segurança não foram capazes de conter o avanço da atividade ilegal no território. A ação pede, ainda, a reabertura dos postos de saúde fechados e que a Funai reative o posto de fiscalização em Surucucus, abandonado desde 2009.
O MPF pediu que os órgãos de fiscalização passem a inutilizar aeronaves, veículos e equipamentos encontrados em operações de fiscalização. "Atualmente, a nomeação de responsáveis legais pelos bens tem se mostrado insuficiente, pois em diversos casos, o maquinário foi encontrado sendo novamente utilizado no apoio logístico ao garimpo", afirmou.
As operações executadas em 2021 contra criminosos ambientais foram resultado de ação promovida pelo órgão em 2020, no qual decisões da Justiça Federal impuseram a retirada de todos os garimpeiros da Terra Yanomami. O Supremo Tribunal Federal (STF) também determinou o enfrentamento do garimpo nesse território. O MPF apurou, no entanto, que dos 412 pontos de mineração ilegal estimados no plano de ação, apenas 9 foram objeto de incursão policial.
Dos 277 pontos de apoio logístico fora da Terra Yanomami - estruturas que incluem pistas de pouso clandestinas, aeródromos e portos fluviais -, só 70 foram fiscalizados. Na visão da PF, a quantidade de garimpeiros ocupando ilegalmente a área indígena, com máquinas e estrutura moderna, pode dizimar a população tradicional, já bastante vulnerável pelo seu isolamento na Floresta Amazônica.
Entre agosto de 2020 e fevereiro de 2022, foram registrados 3.059 alertas de novos pontos de extração mineral na TI Yanomami, afetando uma área de 10,86 km². Só em janeiro de 2022, foram 216 alertas de mineração ilegal.
O fluxo de garimpeiros é apontado como vetor epidemiológico, resultando em altas taxas de infecção de malária, além de contaminar os rios com mercúrio, tornando as águas impróprias para consumo. Mais recentemente, o contágio pela covid-19 também se tornou um risco. Assediados por garimpeiros com oferta de dinheiro, muitos indígenas têm abandonado suas práticas tradicionais, gerando um quadro de insegurança, fome e conflitos.
Conforme o MPF, as medidas buscam evitar crimes como o estupro e morte da menina Ianomâmi relatado pelo presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena, bem como outros denunciados pela Hutukara Associação Yanomami. Relatório da associação cita ao menos três crimes contra a dignidade sexual de vulneráveis, crimes de trabalho escravo e de disseminação de bebidas alcoólicas entre indígenas de contato recente. "O MPF busca mais informações para abrir investigação específica e definir as medidas cabíveis em cada caso", disse.
Ibama diz cumprir decisões do STF
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ligado ao Ministério do Meio Ambiente, informou ter realizado operações contra o garimpo clandestino, em cumprimento a decisão dada em ação que tramita no STF. Em duas operações, no fim de 2021, foram identificadas e embargadas 59 pistas de pouso, três portos no Rio Uraricoera e cinco helipontos clandestinos que serviam de apoio logístico ao garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. Os infratores usavam essas estruturas para levar suprimentos, combustível e insumos para o local.
Os canais de entrada de suprimentos foram embargados. Houve ainda a apreensão e inutilização de 11 aeronaves, oito veículos, três tratores e 15 mil litros de combustíveis. A operação teve apoio da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e da Força Nacional. Em outra ação, o Ibama participou da Operação Baixo Rio Branco, em conjunto com o Exército, Polícia Federal e Funai para reprimir o tráfico de drogas, crimes ambientais e contrabando na fronteira com a Venezuela. Foram destruídos e desarticulados 20 garimpos ilegais.
O governo Jair Bolsonaro tem sido um defensor das flexibilizações das regras que impedem o garimpo em reservas indígenas. Em fevereiro deste ano, chegou a criar um programa "de apoio ao desenvolvimento da mineração artesanal".
Sobre o ataque às mulheres indígenas, com o estupro e morte da menina ianomâmi por garimpeiros, a reportagem entrou em contato com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), que respondeu que as questões relacionadas aos povos indígenas são tratadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Procurados pela reportagem, a Funai e o Ministério da Saúde ainda não se manifestaram.