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Grupo reúne condenados na Lei Maria da Penha para reflexão

Projeto Repensar coloca homens para refletir sobre redução da violência doméstica

21 jul 2022 - 12h13
(atualizado em 9/8/2022 às 12h18)
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Ofensores, como são chamados os homens que participam das reuniões, são encaminhados pelo Ministério Público Estadual
Ofensores, como são chamados os homens que participam das reuniões, são encaminhados pelo Ministério Público Estadual
Foto: Acervo/Fundação Margarida Maria Alves

Ao longo de 2020, o país registrou mais de um chamado por minuto para denunciar violências cometidas contra mulheres em suas próprias casas. Os dados são do 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em 2021.

Também foram contabilizados 230.160 registros de lesão corporal dolosa cometida em contexto de violência doméstica em 2020. Isto significa dizer que, ao menos 630 mulheres procuraram uma autoridade policial diariamente para denunciar um agressor.

Os números impressionam, mas não chegam a ser uma surpresa. O grande questionamento em relação aos casos de violência doméstica no Brasil se refere ao que fazer para que esses dados diminuam. Como proteger meninas e mulheres da violência que acontece dentro de suas casas?

Um caminho nesse processo, e talvez o mais complexo, é a mudança de mentalidade na percepção social dos homens em relação às mulheres e qual a responsabilidade deles nesse contexto.

Nesse sentido, a Fundação Margarida Maria Alves pôs em prática o “Projeto Repensar: Refletindo Coletivamente a Violência Doméstica e Familiar Contra Mulheres”, voltado para homens que foram condenados pela Lei Maria da Penha (e que aguardam a sentença) e que funciona em parceria com Ministério Público da Paraíba.

Ao todo, foram 10 encontros que tiveram início em 5 de julho, sempre nas terças-feiras à tarde, na sede da Fundação Margarida Maria Alves.

Na terça-feira, 19 de julho, tive o privilégio de participar como ouvinte do encontro de encerramento.

O primeiro passo

Os ofensores, como são chamados os homens que participam das reuniões, são encaminhados pelo Ministério Público Estadual. Todos eles já passaram pelo processo e aguardam a sentença do juiz. Tâmisa Rúbia, agente de direitos humanos facilitadora, me explica como funciona essa abordagem. “Recebemos uma lista do MP e entramos em contato direto com eles e formamos a primeira turma, com 15 ofensores”.

Ao longo do projeto, foram três facilitadoras da equipe da Fundação, Tâmisa Rúbia, Ana Beatriz Eufrauzino, ambas advogadas; e a psicóloga Vera Rodrigues, que atuou nas oficinas com mulheres feitas em janeiro e fevereiro deste ano em comunidades beneficiadas da Fundação. Além delas, o médico Eduardo Simon, professor da Universidade Federal da Paraíba que desenvolve desde 2018 rodas de diálogo com homens.

Vera Rodrigues e Ana Beatriz iniciaram o projeto em outubro do ano passado, organizando o cronograma, entrando em contato com o Ministério Público e realizando essas oficinas com mulheres. Com uma reestruturação na equipe da Fundação, a Vera saiu do projeto e a Tâmisa entrou, seguindo junto com Ana Beatriz e a estagiária de direito, Joana Karen, na formulação dos grupos reflexivos e nos contatos com o MPPB para o encaminhamento dos homens.

“Se a necessidade é minha, a obrigação é sua“

As reuniões trataram de questões como a reflexão sobre papéis familiares e conflitos de convivência; gênero; violência; solução de conflitos a partir do diálogo; convivência familiar: comportamento agressivo; Direitos Humanos; Lei Maria da Penha; sexualidade; doenças sexualmente transmissíveis e comportamentos de risco; violência sexual; entre outras.

Foram utilizadas metodologias diversas, como exibição de vídeos, círculos reflexivos e dinâmicas, como a “teia da violência” e “o que seria coisa de homem e coisa de mulher?”, para discutir a construção cultural da relação dos homens com as mulheres.

"Eu sabia que estava errado, só não entendia o porquê"
"Eu sabia que estava errado, só não entendia o porquê"
Foto: Acervo/Fundação Margarida Maria Alves

Uma nova percepção

Na sala pequena, com cadeiras em círculo, homens de todas as idades, raças, condições sociais. Notei que de todos eles, apenas dois usavam aliança. Depois de me apresentar, fomos todos convidados a contar como havia sido nosso dia, inclusive eu. Apenas um dos homens, um rapaz bem jovem, confessou que sua noite tinha sido ruim. “Não dormi direito, pensando nas coisas”.

Após a fala inicial, todos se reuniram para a primeira e única dinâmica da tarde, que serviria de base para o restante da reunião, que durou mais de três horas.

Num círculo, foram convidados a massagear as costas do companheiro da frente. Risos nervosos, certo desconforto visível.

“Eu senti como se estivesse fazendo um carinho no meu filho. Eu nunca recebi carinho do meu pai”

Os questionamentos eram bem diretos. Como você se sentiu ao tocar um outro homem? De onde vem esse sentimento?

Confesso que demorei a entender o ponto central daquela dinâmica e como ela se conectava com as perguntas das facilitadoras e a consequente resposta dos ofensores. Mas a chave principal era a masculinidade tóxica. O entendimento que aqueles homens tinham sobre a relação deles com o mundo partia de um princípio comum e ao mesmo tempo, complexo.

“Somos criados no silêncio, mas em algum momento a gente explode. É como viver sentado em cima de um vulcão“

A facilitadora Tâmisa Rúbia conta que as atividades desenvolvidas no âmbito do Projeto Repensar contribuíram para a desconstrução de algumas perspectivas que estes homens apresentavam como inerentes a quem eles são. “Percebo, por exemplo, que conseguiram associar muitos de seus comportamentos naturalizados aos papéis sociais de homens e mulheres que são culturalmente impostos pela sociedade, que compreenderam-se como produto desta cultura e, portanto, reprodutores dos ciclos da violência nas relações de gênero, mas igualmente como sujeitos capazes que quebra-las”.

“Alguns, por exemplo, não sabiam a extensão de danos que a divisão dos papéis de gênero causam na vivência coletiva e também na realidade da violência contra a mulher”, disse Ana Beatriz.

"Eu sabia que estava errado, só não entendia o porquê"

“Hoje eu sei o que é agressão, mas antes eu não sabia”
“Hoje eu sei o que é agressão, mas antes eu não sabia”
Foto: Acervo/Fundação Margarida Maria Alves

Um novo caminho possível

Esse último encontro serviu também de avaliação e os ofensores puderam expor quais suas percepções sobre o processo e qual o momento mais marcante de cada um. Um dos homens relatou ter ficado impressionado com a história de Maria da Penha, com a crueldade que ela viveu e com a demora na justiça brasileira em reconhecer os crimes que ela foi vítima.

Um outro homem, bem mais velho, lembrou das perdas que viveu e da primeira vez que chorou em público. Um dos ofensores salientou que não iria criar o filho do jeito que foi criado.

Ao final, todos assinaram a lista de frequência, que será enviada, junto com um relatório individual, para o Ministério Público. Esse relatório pode servir de atenuante para a pena, é o juiz que irá decidir. Mas esse não é o objetivo principal do Projeto Repensar.

Para Ana Beatriz, a mudança de comportamento é o ponto principal. “Para além dos encontros teóricos, o projeto proporcionou momentos de acesso desses homens para com seus próprios sentimentos e sua própria construção individual, trabalhando o uso da comunicação não violenta e a compreensão e interpretação de seus próprios sentimentos. No todo, conseguimos observar algumas mudanças bem interessantes em alguns homens, o que mostra um quadro bastante positivo sobre a existência e exercício do projeto”

Tâmisa Rúbia aponta que é necessário um acompanhamento desses homens para além do âmbito do projeto, tendo em vista que se trata de um processo de quebra de paradigmas, de um processo de transformação de vida. “Nisto se encontra a importância da atuação em rede também em relação ao acompanhamento dos progressos dos ofensores. Entretanto, foi possível observar que o Projeto contribuiu para o desenvolvimento de atitudes positivas nesses homens em suas relações de forma geral e que, no mínimo, despertou seus olhares para este necessário processo de mudança pessoal”

“Hoje eu sei o que é agressão, mas antes eu não sabia”

Por ser esse o primeiro grupo reflexivo, não é possível, ainda, apontar o nível de rescendência do Projeto Repensar. Mas um outro projeto, esse realizado pelo próprio Ministério Público, não obteve nenhum caso de reincidência, mas vale destacar que o acompanhamento dura apenas seis meses.

Segundo dados do Núcleo de Combate à Violência Doméstica Contra a Mulher (Gevid), da USP,  a reincidência pela Lei Maria da Penha passou de 65% para 2% entre homens que participam de grupos reflexivos.

A próxima turma do Grupo Reflexivo de Homens do Projeto Repensar irá iniciar em agosto.

O Projeto Repensar é apoiado com recursos do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos do Estado da Paraíba, instituído pela Lei Estadual Nº 8.102, de 14 de novembro de 2006.

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