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Leila Diniz: os 50 anos da morte da atriz que desafiou conservadorismo e foi perseguida pela ditadura

Amigos e autores relembram trajetória de uma das atrizes mais famosas e polêmicas de sua época.

14 jun 2022 - 07h05
(atualizado às 10h13)
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Proibida de trabalhar como atriz, Leila Diniz abriu uma butique
Proibida de trabalhar como atriz, Leila Diniz abriu uma butique
Foto: Acervo Pessoal / BBC News Brasil

O cineasta Luiz Carlos Lacerda, de 76 anos, zarpava para um passeio de barco pelo litoral de Paraty, cidade histórica do litoral fluminense, quando, do cais, uma mulher acenou em sua direção. Curioso, resolveu voltar para o porto. Ela, então, contou que, infeliz no casamento, tinha acabado de assistir ao recém-lançado Leila Diniz (1987) e saiu da sessão decidida a dar um rumo à sua vida. "Ao chegar em casa, mandou o marido às favas. Deu um fim àquele casamento horroroso e, dali em diante, levou uma vida mais feliz", recorda Bigode. "Quando decido rodar um filme, não penso no sucesso que vai fazer ou na grana que pode dar. O importante é o reconhecimento do público".

Noutra ocasião, um rapaz lhe confidenciou que, depois de conhecer melhor a história de Leila Diniz (1945-1972), interpretada no cinema por Louise Cardoso, resolveu assumir sua homossexualidade para a família. "O mérito não é meu ou do filme. O mérito é todo da Leila!", garante o diretor. "A história dela é muito forte. Foi uma revolucionária de costumes. Uma mulher que mudou o comportamento das mulheres. Grávida, dessacralizou a maternidade ao botar um biquíni e ir à praia, sem proteger a barriga com uma bata, como era costume. Mas, ela não queria levantar bandeiras ou chocar a sociedade. Fazia apenas o que achava que era o melhor para a vida dela".

Leila e Bigode se conheceram em fevereiro de 1959, no bar Jangadeiro, em Ipanema, Zona Sul do Rio. E, logo, se tornaram grandes amigos. Tinham, aliás, a mesma idade: 14 anos. Trabalharam juntos, quase dez anos depois, em Fome de Amor (1968), de Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) — Leila como atriz e Bigode como assistente de direção. Dessa vez, não se desgrudaram mais. Voltaram a dividir o set em Azyllo Muito Louco (1969), também dirigido por Nelson, e em Mãos Vazias (1970), estreia de Bigode na direção.

"Leila costumava dizer que tanto fazia interpretar William Shakespeare ou Glória Magadan. O importante era a patota", explica Bigode que, no mesmo ano de lançamento do filme, publicou a biografia Leila Para Sempre Diniz (Record). "Era uma pessoa divertida, mas não era 'porra-louca'. Pelo contrário. No set, era muito responsável. Podia passar a noite na farra. Mas, na manhã seguinte, tomava banho gelado e estava pronta para filmar, sempre com o texto decorado. Levava o trabalho muito a sério".

Leila Diniz, Ana Miranda e Luiz Carlos Lacerda em Bangcoc, em 13 de junho de 1972, em foto tirada por Arduíno Colasanti
Leila Diniz, Ana Miranda e Luiz Carlos Lacerda em Bangcoc, em 13 de junho de 1972, em foto tirada por Arduíno Colasanti
Foto: Arduíno Colasanti / BBC News Brasil

Foi graças a Mãos Vazias que Leila foi convidada a participar de um festival de cinema em Adelaide, na Austrália, em 1972. Na volta para casa, Leila, Bigode, Arduíno Colasanti (1936-2014) e Ana Miranda resolveram passar uns dias em Kuala Lumpur, na Malásia, e outros em Bangkok, na Tailândia. De lá, a trupe seguiria para a Índia. Leila, com saudade da filha Janaína, de apenas sete meses, que ficou no Rio aos cuidados da amiga Ana Maria Magalhães, resolveu voltar para o Brasil.

O jato DC-8 da Japan Airlines, que faria escalas em Nova Délhi, Teerã, Cairo, Roma e Londres, antes de seguir para o Rio, nunca chegou ao destino. Na tarde do dia 14 de junho, a poucos minutos de aterrissar no aeroporto de Nova Délhi, a aeronave caiu, matando 78 passageiros e onze tripulantes. "A Leila, quando viajou para a Austrália, estava repensando sua vida. Não conseguia mais trabalhar como atriz porque estava proibida. Abriu uma butique, a loja Doze, com a Vera Barreto Leite, mas não era bem o que ela queria. Chegou a cogitar a hipótese de abrir uma escolinha. Infelizmente, não deu tempo para nada…", lamenta Bigode.

Leila Diniz ganhou, post-mortem, o prêmio de melhor atriz no Festival de Adelaide.

Últimas palavras

A notícia da morte de Leila, com apenas 27 anos, pegou a todos de surpresa. "Toda vez que me lembro do que aconteceu, sinto uma dor no peito", confessa Marieta Severo, de 75 anos. Ela e Leila se conheceram nos estúdios da TV Globo, durante as gravações da novela O Sheik de Agadir (1966). Na trama de Glória Magadan (1920-2001), uma escritora cubana radicada no Brasil, Marieta interpretou uma princesa árabe — sob a alcunha de Rato, entrou para a História como a primeira 'serial killer' da teledramaturgia brasileira — e Leila, uma espiã nazista.

Na TV, atuou em 12 novelas: cinco na Globo, três na Excelsior, duas na Paulista, uma na Record e outra na Tupi. "Em Anastácia, a Mulher Sem Destino (1967), Leila Diniz alcançou seu maior destaque ao interpretar a personagem-título e, depois de uma passagem de tempo, também a filha dela", recorda o consultor e pesquisador Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia pela USP e autor de A Hollywood Brasileira — Panorama da Telenovela no Brasil (SENAC Rio). "Quando Glória Magadan mudou de emissora, convidou Leila, uma de suas atrizes favoritas, para atuar em Nós, Aonde Vamos? (1970). Sua trajetória foi breve, porém marcante".

Marieta Severo conta que, por ocasião de seu exílio na Itália, em 1969, Leila foi uma das pessoas que mais lhe escreveram cartas, mandando notícias do Brasil. "Para mim, Leila era imortal. Nunca imaginei que pudesse morrer tão jovem. Quando regressei ao Brasil, com a Silvinha pequena, não pude trazer tudo. Com 23 anos, você não dá valor às coisas que tem. Então, me desfiz de tudo. Tinha certeza de que, quando chegasse em casa, ela me contaria tudo de novo. Hoje em dia, guardo tudo. Até bilhete em guardanapo", explica a atriz.

Leila Diniz e Luiz Carlos Lacerda durante a filmagem de Mãos vazias em Paraty, 1970
Leila Diniz e Luiz Carlos Lacerda durante a filmagem de Mãos vazias em Paraty, 1970
Foto: Rogério Noel / BBC News Brasil

Durante anos, Marieta guardou os escritos de Leila. Segundo a atriz, a amiga tinha dois hobbies: escrever diários e nadar na praia.

"As saudades de Janaína são muitas. Será que estou sendo a mãe que ela merece? A babá tem ficado mais tempo com ela do que eu. Desse jeito, a mãe acabará babá e a babá, mãe", escreveu Leila, a bordo do DC-8 da Japan Airlines, em seu diário.

"Estamos chegando em Nova Déli. Segundo anunciam, a temperatura local é quase a do inferno. Quente paca! Agora está acontecendo uma coisa es…". O inquérito que apurou a causa do acidente concluiu que o avião caiu por falha humana.

"Mamãe-canguru"

O diário em que redigiu suas últimas palavras foi encontrado, chamuscado, pelo cunhado, o advogado Marcelo Cerqueira. Suas cinzas foram sepultadas no cemitério São João Batista, em Botafogo, no Rio.

"Os diários da Leila ficaram comigo por muitos anos. No entanto, nunca li, nem quis publicar. Por diversas vezes, tentei entregá-los para a Janaína. Mas, ela pedia para ficar comigo. Até que chegou uma hora, há alguns anos, que ela aceitou enfrentar os diários da mãe", relata Marieta.

Com os sete diários em mãos, a diretora, produtora e roteirista Janaina Diniz Guerra, filha da atriz com o cineasta moçambicano Ruy Guerra, pretende rodar um filme, Despedaços, e uma série documental, Toda Mulher É Meio Leila Diniz.

Das lembranças que guarda, um cartão-postal da Austrália, assinado: "Mamãe-canguru".

"Tô com muita saudade. Hoje, fui ver os cangurus, as mães e os filhotes. Daqui a uns dois anos, quero voltar para cá, nós duas, ver você correndo por um desses parques daqui, toda colorida e coradinha num lugar como este, com muitos bichos e muito oxigênio vindo dos verdes. Já fiz amizade com um canguru que me seguiu o tempo todo. Volto logo, amor, mais bonita e mais feliz, acho", escreveu.

Homenagens póstumas

Homenagens, Leila recebeu muitas: crônica de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), biografia de Joaquim Ferreira dos Santos, doutorado da antropóloga Mirian Goldenberg... Só música, foram quatro: Memória Livre de Leila (1972), de Taiguara (1945-1996); Um Cafuné na Cabeça, Malandro, Eu Quero Até de Macaco (1980), de Milton Nascimento; Leila Diniz (1987), de Martinho da Vila; e Todas as Mulheres do Mundo (1993), de Rita Lee.

A mais recente delas, o documentário Já que Ninguém me Tira pra Dançar, foi uma iniciativa da atriz e cineasta Ana Maria Magalhães, de 72 anos. Quando saíam para beber, Leila, depois de alguns copos de chope, costumava dizer à amiga: "Já que ninguém me tira pra dançar, vou dar uma mijadinha!". O documentário começou a ser gravado em 1982 e, por falta de verba, só foi concluído em 2021.

Entre outros depoimentos, traz entrevistas inéditas com parentes, colegas e amigos de Leila Diniz, como sua irmã, a socióloga Eli Diniz; o primeiro namorado, o psicanalista Luiz Eduardo Prado; e o ex-marido, o cineasta Domingos Oliveira (1936-2019), diretor de Todas as Mulheres do Mundo (1966), seu maior sucesso no cinema. À época, Leila Diniz ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília. O cineasta Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, define a amiga de adolescência como uma mistura de Marilyn Monroe (1926-1962) e Dercy Gonçalves (1907-2008). "Feminina como a Marilyn, irreverente como a Dercy", completa.

Uma imagem rara mostra Leila e Ana Maria cantando e dançando ao som de Urucubaca (1970), do The Fevers. A cena faz parte de uma comédia que nunca chegou a ser concluída: As Bandidas, de Gustavo Dahl (1938-2011). "Quero apresentar a Leila às novas gerações como uma mulher que abriu a estrada da revolução sexual no Brasil. Provocou as mulheres a conquistar autonomia e igualdade sem jamais perder a ternura. Num mundo cada vez mais agressivo, seu legado de amor e alegria pode nos tornar pessoas melhores", acredita.

Lei anti-palavrão

Leila recebeu muitas homenagens: crônica de Carlos Drummond de Andrade e músicas de Taiguara, Milton Nascimento, Martinho da Vila e Rita Lee
Leila recebeu muitas homenagens: crônica de Carlos Drummond de Andrade e músicas de Taiguara, Milton Nascimento, Martinho da Vila e Rita Lee
Foto: Acervo Pessoal/Ana Maria Magalhães / BBC News Brasil

No documentário, o jornalista Tarso de Castro (1941-1991) fala da entrevista que Leila deu ao Pasquim na edição de 20 de novembro de 1969. "Eu não leio críticas. Eles vão ficar (*) comigo, mas não leio", "De uns três meses pra cá, eu ando muito (*) porque a Excelsior se (*) e eu junto" e "Se eu quisesse fazer (*), estava rica".

Foram tantos os palavrões (72, ao todo!) que os editores acharam melhor substituí-los por asteriscos. "Pouco tempo depois, seria instaurada a censura prévia aos meios de comunicação no país. Uma nova Lei da Imprensa que ficaria popularmente conhecida pelo nome da atriz", explica o jornalista Marcio Pinheiro, autor de Rato de Redação — Sig e a História do Pasquim (Matrix), referindo-se ao decreto-lei 1.077, de 26 de janeiro de 1970.

A edição com a entrevista com Leila Diniz, a de número 22, foi a terceira mais vendida da história do Pasquim: 117 mil exemplares. Atrás apenas da edição de número 27, que vendeu 200 mil exemplares, e a de número 23, 140 mil. "Naquele período, o Pasquim vendia mais do que Manchete e Veja, dois dos fenômenos editoriais da época".

Tão polêmica quanto a entrevista dada ao Pasquim só a sessão de fotos que Leila Diniz aceitou fazer, grávida de cinco meses, para a revista Cláudia. A atriz posou de barriga de fora, dentro d'água e com um chapéu de palha, para a câmera do fotógrafo Joel Maia na ilha de Paquetá.

Exílio na serra

Em outro trecho do documentário, o advogado Marcelo Cerqueira lembra da perseguição que a cunhada sofreu na ditadura. Sob o argumento de que Leila ameaçava a moral e os bons costumes, chegou a ser expedido um mandado de prisão.

Em janeiro de 1971, dois policiais compareceram aos estúdios da TV Tupi, no antigo Cassino da Urca, para cumprir a determinação judicial. Para evitar a prisão de sua jurada, o apresentador Flávio Cavalcanti (1923-1986) aconselhou Leila a ir ao banheiro assim que o programa voltasse do intervalo comercial.

Nos bastidores, Leila trocou de vestido com Laudelina Maria Alves, a Nenê, sua secretária, e fugiu, em um carro da produção, para Petrópolis, região serrana do Rio.

Enquanto isso, Cerqueira e Nenê, disfarçada de Leila Diniz, eram interceptados pelos agentes da lei em frente ao número 204 da avenida Epitácio Pessoa, onde a atriz morava, em Ipanema.

"Leila andava assustada. Tinha medo que os fanáticos do regime militar, que a consideravam imoral e subversiva, conseguissem prendê-la", recorda o filho do apresentador, Flávio Cavalcanti Júnior, autor de Senhor TV (Matrix). "O velho, então, a convidou para passar uns dias conosco. Leila conquistou a todos com seu alto astral".

O então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid (1914-1991), concordou em suspender a ordem de prisão de Leila Diniz, mas impôs uma condição ao advogado Marcelo Cerqueira: a atriz teria que assinar um termo de responsabilidade, se comprometendo a não falar mais palavrões em público.

Se o avião em que Leila Diniz viajava não tivesse caído na tarde de 14 de junho de 1972, Leila Roque Diniz estaria hoje com 77 anos. O que ela estaria fazendo? Na biografia Leila Diniz — Uma Revolução na Praia (Cia das Letras), o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos dá algumas pistas ao citar seus sonhos mais recorrentes: "abrir uma escola", "escrever um roteiro com o título Todos os Homens do Mundo" e "partir para a produção de espetáculos".

Difícil dizer, admitem seus amigos. "Imaginar o que Leila estaria fazendo hoje, penso eu, é impossível. Certamente, não estaria fazendo nada daquilo que a gente imagina. Leila sempre foi uma figura absolutamente surpreendente", derrama-se Bigode. Algo, porém, é certo.

"Estaria de mãos dadas com todo mundo que está lutando contra esse retrocesso de costumes", acredita Marieta.

"Certamente, lutaria do seu jeito espontâneo e divertido contra o autoritarismo, a censura e os horrores do atual governo", completa Ana Maria.

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