"Letramento de gênero pode proteger a saúde mental das mulheres"
Pesquisadora da UnB estuda correlação de machismo estrutural e violência com depressão e ansiedade entre as mulheres
O diagnóstico de depressão no Brasil entre as mulheres (14,7%) é o dobro do que o registrado entre os homens (7,3%), de acordo com dados de um levantamento do Ministério da Saúde realizado nas 26 capitais e Distrito Federal em 2021.
No continente americano, as brasileiras são líderes nos casos de transtornos de ansiedade e ocupam a sexta posição entre os diagnósticos de depressão, segundo dados da Organização Panamericana de Saúde (Opas) de 2019.
Para a psicóloga e pesquisadora de saúde mental e gênero Valeska Zanello, professora da Universidade de Brasília (UnB), múltiplos fatores sociais e biológicos devem ser considerados antes de se afirmar que as mulheres têm uma maior propensão ao adoecimento mental.
"Não gosto de usar a palavra 'propensão', porque passa a ideia de que transtornos mentais são um problema interno que vai se expressar, ou que existe uma tendência maior a se expressar na vida das mulheres."
Focada em entender a correlação entre violência de gênero e adoecimento mental entre as mulheres, Zanello defende a criação de um protocolo de atendimento voltado às mulheres diagnosticadas com depressão.
"Existem muitas pesquisas que mostram que toda vez que uma mulher é diagnosticada com depressão, os profissionais da saúde deveriam ter um protocolo para investigar se a paciente sofre violência por parte do parceiro íntimo", diz a pesquisadora da UnB.
Em entrevista à DW Brasil neste 28 de maio, Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher, Zanello também apresenta soluções para a problemática.
"Acredito que a solução passa por um letramento de gênero. Se você é ensinada, estimulada a investir em projetos de vida que não dependam da questão amorosa e da maternidade para existirem, que não dependam da avaliação masculina para ter valor, isso te fortalece psiquicamente, fortalece a sua saúde mental", defende.
DW: Os dados mostram que o diagnóstico de depressão e transtorno de ansiedade é maior em mulheres do que nos homens no Brasil. Isso significa que as mulheres têm maior propensão à depressão e ansiedade do que os homens?
Valeska Zanello: Eu não gosto de usar a palavra "propensão", porque passa a ideia de que transtornos mentais são um problema interno que vai se expressar, ou que existe uma tendência maior a se expressar na vida das mulheres. A depressão não deve ser tratada como uma entidade que se manifesta por si só, independentemente da cultura, das relações sociais, das desigualdades de gênero e de todo um contexto em que essa mulher vive. Interessa apenas à indústria farmacêutica entender a questão do sofrimento psíquico, especificamente da depressão, como uma entidade em si mesma. Acredito que seja melhor pensarmos nessa questão [dos maiores números de depressão e ansiedade entre as mulheres] considerando os múltiplos níveis de sofrimentos que atuam na nossa saúde mental.
Podemos afirmar que machismo estrutural ajuda a explicar os dados de casos de ansiedade e depressão serem maiores entre as mulheres?
Falando do Ocidente, que é meu objeto de estudo, o sofrimento mental das mulheres costuma ser maior em países sexistas, como o Brasil, onde as desigualdades de gênero marcam e persistem durante toda a vida da mulher. Temos mulheres que precisam de dois, até três empregos para sustentar a família; que são hiper responsabilizadas pelo cuidado dos filhos e da casa, que são mães solo; que são vítimas de violências de gênero etc.. Existem muitas pesquisas que mostram que toda vez que uma mulher é diagnosticada com depressão, os profissionais da saúde deveriam ter um protocolo para investigar se a paciente sofre violência por parte do parceiro íntimo, por exemplo.
No caso de violência doméstica, outro exemplo, pesquisas mostram que os sintomas relacionados à saúde mental da vítima podem durar por até dois anos após o fim da situação de violência vivida. Não adianta o profissional da saúde medicar e suprimir os sintomas, e não investigar as múltiplas causas desse adoecimento mental. Mas, por outro lado, não podemos falar em uma causalidade direta, afirmar que as desigualdades e violências de gênero vão resultar necessariamente em depressão na mulher. Quando se trata de saúde mental, são sempre múltiplos fatores que devem ser considerados, inclusive os hormonais, e isso a gente só consegue fazer quando garantimos um lugar de escuta para essas mulheres.
Pode dar exemplos de como as várias violências de gênero na nossa sociedade podem contribuir para um sofrimento e adoecimento mental nas mulheres?
Na sociedade brasileira, uma pessoa se torna mulher através do dispositivo amoroso e materno, onde o ideal estético é algo fundamental para a nossa identidade. Aprendemos desde muito pequenas que a estética do nosso corpo vai nos colocar ou não em um "bom lugar na prateleira". Quando você envelhece ou quando seu corpo não atende ao ideal estético e você se percebe como um objeto velho e descartável para a sociedade, é muito deprimente. Por exemplo, eu fiz uma pesquisa recentemente em que entrevistei mulheres que atravessam a menopausa, um período de grandes mudanças hormonais e sociais. Todas elas me disseram: "eu me sinto invisível" ou "eu deixei de ser mulher". Numa sociedade binária como a nossa, em que ser pessoa é ser mulher ou ser homem, um processo social de apagamento gera sofrimento, que pode ser associado a uma depressão.
Por falar de hormônios, é comum associar a depressão feminina aos fatores hormonais e ao seu ciclo reprodutivo, como a depressão pós-parto e a depressão na menopausa. Como você vê essa questão?
Pesquisas mostram que quem mais prescreve psicotrópicos no Brasil não são psiquiatras, mas os médicos generalistas e os da atenção primária, como ginecologistas. Se uma mulher entra na menopausa e se queixa de estar deprimida, geralmente entre os seus 45 e 55 anos, muitos ginecologistas receitam antidepressivos. Ou seja, ao medicalizar os sintomas sem tratar as causas, desconsidera-se todo um contexto psíquico e social pelo qual essa mulher deve estar passando. A menopausa é uma fase em que o corpo e a relação sexual da mulher mudam bastante; tem o ressecamento vaginal, o desconforto no sexo, o ganho de peso às vezes, etc.. Se essa mulher for casada, o relacionamento pode entrar em crise se o parceiro não entender esse momento delicado da mulher.
Se ela for mãe, geralmente é nessa época que os filhos saíram ou estão se preparando para sair de casa e essa mulher tem que enfrentar o sentimento de "ninho vazio"; se ela não tem um casamento feliz, pior, agora ela não terá mais como encobrir esse relacionamento com a presença de terceiros dentro de casa. Ou seja, não estamos falando somente de hormônios. Não dá para medicalizar nossos corpos e nossas vidas quando passamos por essas mudanças como a menopausa, é preciso considerar o lugar social onde nos colocam essas mudanças.
Numa sociedade desigual, sexista e machista como a brasileira, como promover a saúde mental das mulheres antes que elas adoeçam?
Acredito que a solução passa por um letramento de gênero. Se você é ensinada, estimulada a investir em projetos de vida que não dependam da questão amorosa e da maternidade para existirem, que não dependam da avaliação masculina para ter valor, isso a fortalece psiquicamente, fortalece a sua saúde mental. Porém, para isso acontecer, a mulher precisa conseguir nomear os processos relacionados às relações desiguais de gênero construídas historicamente.
Por isso, eu e a professora Lígia Feitosa, da UFSC, criamos um baralho de letramento de gênero para adolescentes, onde listamos coisas do cotidiano, que parecem normais, mas que se baseiam no machismo e no sexismo, e que é uma forma de violência. Abordamos situações como uma menina que não quer ir a uma festa por causa de uma espinha no rosto, então explicamos a origem dessa distorção de perspectiva; abordamos a situação dos meninos que criam listas onde avaliam as meninas da escola de acordo com a sua beleza, etc.. Explicamos como essas situações podem ter desdobramentos importantes na vida dessas meninas, seja na violência de gênero, seja na saúde mental delas.