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Livro lido na escola motivou sexualização da mulher indígena

Publicado em 1865, "Iracema", de José de Alencar, abusou dos estereótipos para retratar heroína e romantizar a origem do Ceará

5 set 2023 - 05h00
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Clássico da Literatura Brasileira ajudou a perpetuar a ideia de que os corpos  das mulheres indígenas são disponíveis
Clássico da Literatura Brasileira ajudou a perpetuar a ideia de que os corpos das mulheres indígenas são disponíveis
Foto: iStock

Hoje, 5, Dia Internacional da Mulher Indígena, é uma data de celebração para as mulheres pertencentes aos povos originários, mas também de resistência e muita luta principalmente por formarem um grupo historicamente subjugado e alvo de múltiplas violências. Os estereótipos que envolvem a mulher indígena, principalmente em relação à sua cultura e à nudez de seus corpos, são a causa principal de sua sexualização e consequente vulnerabilidade. Um processo que foi reforçado por grandes escritores da literatura brasileira, como José de Alencar (1829-1877) e seu clássico "Iracema".

'Resistir para existir' nunca foi tão importante para os indígenas quanto agora:

Publicado pela primeira vez em 1865, "Iracema" é um dos títulos que fazem parte da chamada Trilogia Indianista de Alencar, composta ainda por "O Guarani" (1857) e "Ubirajara" (1874). O Indianismo foi uma espécie de subcategoria do movimento literário Romantismo e, como o próprio nome indica, traz um indígena como protagonista. O objetivo do Indianismo era incentivar a identidade nacional; porém, com um viés elitista e com narrativas bem problemáticas aos olhos de hoje, como uma inverossímil harmonia entre os colonizadores e os povos originários.

José de Alencar: Trilogia Indianista tinha visão estereotipada dos povos originários e romantizou colonização
José de Alencar: Trilogia Indianista tinha visão estereotipada dos povos originários e romantizou colonização
Foto: Wikimedia Commons

Em "Iracema", José de Alencar conta uma versão romantizada da origem do Ceará, sua terra natal. Para isso, descreve o trágico amor entre a indígena e o colonizador português Martim. Moacir, fruto do relacionamento dos dois, representa o primeiro cearense e o símbolo da união entre o povo indígena e o homem branco. O olhar idealizado sobre a miscigenação fez de "Iracema" não só um clássico, mas um objeto de estudo e análise nas aulas de Literatura Brasileira nas escolas e durante muito tempo uma obra obrigatória para as provas de ingresso no Ensino Superior.

"É uma narrativa construída a partir de uma ideia colonialista e que transformou o corpo da mulher indígena num corpo-objeto cuja ideia dura até hoje", comenta Pietra Dolamita, mestra em Antropologia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e mulher indígena da etnia Apurinã.

Beleza e nudez como convite

Filha de um pajé do povo Tabajara, Iracema é descrita como "a virgem dos lábios de mel" e seus cabelos como "mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira". Sua beleza e pureza formam o combo atrativo perfeito para convidar e "seduzir" o olhar do português Martim, a quem se entrega de forma consensual. O romance é construído para forjar sentimento onde, na real colonização do Brasil, só houve violação e dor. A nudez de Iracema é destacada no livro, em algumas passagens nos banhos de rio, com o intuito nem sempre sutil de sexualizá-la.

"Não somos Iracemas, somos mulheres capazes de produzir mudanças nesse país chamado Brasil", diz antropóloga Pietra Dolamita
"Não somos Iracemas, somos mulheres capazes de produzir mudanças nesse país chamado Brasil", diz antropóloga Pietra Dolamita
Foto: Acervo Pessoal

Não à toa, foi amplificada na versão cinematográfica "Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel" (1979), dirigida por Carlos Coimbra. O filme tem no papel-título Helena Ramos, atriz branca e símbolo sexual de produções eróticas brasileiras dos anos 1970 e 1980. Não chega a ser uma pornochanchada, mas traz várias cenas de sexo entre Iracema e Martim (Tony Correia), longos closes nos seios nus de Helena e até uma sequência da indígena se acariciando no rio com uma flor, insinuando masturbação, enquanto é observada pelo português.

A trilha sonora de Vinicius de Moraes e Toquinho, mestres da MPB, confere uma aura de "valorização dos elementos nacionais" ao filme, mas nada esconde que trata-se de uma produção que objetifica o corpo feminino das mais diversas formas, principalmente o da mulher indígena. "Ainda hoje a sociedade vê o corpo da mulher indígena como um corpo de fácil acesso e que tem a permissão de fazerem o que quiserem com ele", observa Lucimara Patté, uma das lideranças à frente da Articulação Nacional das Mulheres Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA).

"Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel": filme de 1979 tem atriz branca no papel-título, closes de seios e insinuação de masturbação
"Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel": filme de 1979 tem atriz branca no papel-título, closes de seios e insinuação de masturbação
Foto: Reprodução/Divulgação/IMDb

"Eu costumo dizer que eu não sou Iracema. Nós, mulheres indígenas, não somos Iracemas, somos mulheres capazes de produzir mudanças nesse país chamado Brasil", pontua Pietra. A ressignificação da história dos povos originários no Brasil, felizmente, parece pouco a pouco surtir efeito, principalmente em produtos culturais. Muitas das reedições do livro de José de Alencar já não apelam para as características físicas da heroína em suas capas e, nas listas de leituras obrigatórias para o vestibular 2023/2024 de algumas instituições públicas, não se vê o nome de Iracema.

Aqui estão 10 mulheres indígenas pioneiras Aqui estão 10 mulheres indígenas pioneiras

Fonte: Redação Nós
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