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Macumbeira e Micheque: nas redes sociais, violência da corrida presidencial sobra também para Janja e Michelle

Intolerância religiosa e acusações de corrupção são principais narrativas para atacar postulantes a primeira-dama no Twitter e no Instagram

27 out 2022 - 16h02
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 Nas mídias sociais, as ofensas a elas são frequentes e reproduzem temas que marcam a corrida eleitoral: religião e corrupção.
Nas mídias sociais, as ofensas a elas são frequentes e reproduzem temas que marcam a corrida eleitoral: religião e corrupção.
Foto: Reprodução

Na eleição mais violenta da história recente do Brasil, nem as esposas dos candidatos à Presidência da República escapam dos ataques políticos. Nas mídias sociais, as ofensas a elas são frequentes e reproduzem temas que marcam a corrida eleitoral: religião e corrupção. Em duas semanas, Janja da Silva recebeu ao menos 799 ataques e Michelle Bolsonaro 273, segundo os dados do MonitorA, observatório de violência política online desenvolvido pela Revista AzMina, InternetLab e Núcleo Jornalismo.

Em 2022, as mulheres que buscam o título de primeira-dama do Brasil são figuras centrais para corroborar os discursos de seus maridos nas candidaturas e atrair apoio das eleitoras mulheres. A participação ativa nas campanhas, contudo, também faz com que estejam mais expostas à hostilidade do pleito. E os ataques às duas são bem diferentes: enquanto a maioria dos ataques à atual primeira-dama são ofensas morais, relacionadas à corrupção, Janja é mais alvo de intolerância religiosa, mesmo sem declarar sua religião publicamente. 

Os xingamentos à socióloga Rosângela “Janja” da Silva estão principalmente no Twitter, onde uma em cada cinco publicações analisadas eram ofensivas. No Instagram, a esposa de Lula da Silva (PT) recebeu 48 ofensas e insultos em duas semanas, presentes em 15% das interações. Já a atual primeira-dama, Michelle Bolsonaro, que só tem perfil oficial no Instagram, recebeu 273 ofensas, percebidas em 8% dos comentários analisados (veja no final da matéria a metodologia do levantamento). 

Durante o período analisado, a misoginia foi a categoria que mais apareceu entre os ataques — quase um terço das ofensas a Janja no Twitter, e 10% das ofensas para Michelle no Instagram. A principal narrativa é xingar Janja através do marido, com termos como “mulher de ladrão”, “mulher de bandido”, “esposa de bandido”, “casou com o ladrão” e “cuidadora de idoso”, entre outras variações. Além disso, ela também é chamada de “janta”, “feia”, “oportunista”, “baranga”, “amante”, “vagabunda” e “doida”. No caso de Michelle, os comentários misóginos usam palavras como “oportunista”, “feia”, “cuidadora de idosos” e “fraquejada”.  

Em outros casos, os haters vão mais longe e apelam para ofensas e assédio sexual. Nestes, usam palavras explícitas de baixo calão, fazem insinuações sexuais em relação às mulheres ou à vida sexual dos casais.

NO TWITTER, PREDOMINA A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Além da misoginia, chama a atenção no Twitter o volume de xingamentos que recorrem à intolerância religiosa ou fazem acusações de corrupção. Depois do primeiro turno das eleições, estes temas ficaram ainda mais evidentes. Vale lembrar que discriminação e preconceito religioso são crimes no Brasil, passíveis de punição com multa e reclusão de um a três anos.

No caso de Janja, que não faz autodeclaração de religião, o número de ataques aumentou depois do primeiro turno, especialmente quando questões religiosas ganharam destaque, tanto na campanha de Lula quanto na de Bolsonaro. Se antes da votação, 12% das menções analisadas no Twitter eram ofensivas, na semana seguinte o número subiu para 27%. 

Acompanhando este movimento, o uso de palavras ofensivas de intolerância religiosa também cresceu. Na primeira semana considerada na pesquisa, 3% dos ataques têm referências religiosas. Na segunda, são quase 8 vezes mais ataques do tipo, chegando a um quarto dos tuítes ofensivos. No Twitter, 125 posts têm palavras ofensivas sobre religião, incluindo “macumbeira”, “Pombagira”, “satanista”, “falsa cristã” e “demônia”. Michelle, que não tem perfil no Twitter, recebeu no Instagram 11 ofensas religiosas em todo o período observado.

Utilizar expressões que remetem ao candomblé e à umbanda para se referir a alguém com visibilidade política pode trazer uma carga negativa e de acusação, de acordo com Jacqueline Moraes Teixeira, antropóloga e professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Ela ressalta o viés preconceituoso associado a termos como “macumbeira”. “Muitas pessoas pensam em macumba como algo que se praticaria para fazer o mal. E, no caso da Pombagira, interpretam como alguém que tem uma sexualidade desenfreada, remetendo à moralidade, à sexualização desmedida dos inocentes. Neste contexto que vivemos, tudo isso leva ao julgamento e à desumanização das pessoas que praticam estas religiões”. 

Se antes da votação, 12% das menções analisadas no Twitter eram ofensivas, na semana seguinte o número subiu para 27%. 
Se antes da votação, 12% das menções analisadas no Twitter eram ofensivas, na semana seguinte o número subiu para 27%.
Foto: Reprodução

Para analisar as publicações, a metodologia do MonitorA estabelece  uma diferença objetiva entre o que insultos — publicações mais duras que uma simples crítica, mas que não chegam a ser consideradas violência política — e ataques às candidatas, que compreendemos que devem ser retirados das plataformas, por atentarem contra os direitos humanos; no caso, contra postulantes a primeira-dama. 

Neste sentido, principalmente no Twitter, Janja é bastante insultada (em 17% dos tweets) com termos como “ridícula”, “patética”, “hipócrita”, “pilantra”, “mentirosa” e “falsa”; e recebe ofensas morais (12%) como “ladra”, “caloteira”, “corrupta”, “maconheira” e “sem moral”. Em menor número, aparecem ofensas de inferiorização, nojo, etarismo, desumanização, ofensa/assédio sexual, ideologia política, capacitismo/psicofobia e descrédito intelectual.

Entre os posts observados no Twitter, todos direcionados a Janja, o assunto “corrupção” foi discutido em quase metade das publicações (1.460 tuítes ou 48%). Quando este tema é a narrativa central, Lula é atacado ou ofendido em 72% dos tuítes que citam a esposa, enquanto Bolsonaro é atacado ou ofendido em menos de 3% deles. “As esposas são postas na corrida eleitoral para somar com as propostas políticas/ideológicas dos esposos e, consequentemente, acabam também se tornando alvos das críticas e ataques. Esses ataques acabam assumindo formas de violência de gênero a fim de atingir, de alguma forma, a “honra” masculina do marido. Atacar as esposas também é atacar os próprios candidatos, assim como os perfis das esposas são uma porta para estes ataques”, explica a historiadora Dayanny Deise Leite Rodrigues.

NO INSTAGRAM, RELIGIÃO E MORALIDADE

Enquanto o número de comentários nos posts de Janja no Instagram caiu logo após o primeiro turno, os de Michelle quase dobraram. Mesmo com menos interações, proporcionalmente, Janja recebe muito mais ofensas que Michelle. 

No Instagram, a corrupção é a principal narrativa adotada pelo público, citada em 593 comentários, 518 em posts de Michelle Bolsonaro. Quase 80% deles não atacam a atual primeira-dama. Contudo, um em cada quatro comentários sobre corrupção em seus posts atacam ou ofendem Lula, e 17% elogiam ou defendem Jair Bolsonaro. Apenas 5% dos comentários em postagens de Michelle com o tema corrupção trazem ataques e ofensas ao atual presidente. 

Além de ser o principal tema do debate entre os comentadores, a corrupção também dita as ofensas à atual primeira-dama. Mais da metade dos ataques a ela são ofensas morais com acusações de corrupção. O termo “micheque” aparece 143 vezes, mas ela também é acusada de “ladra”, “corrupta” e “traficante”.

“É importante dizer que os ataques às duas estão relacionados a temas polêmicos que ocuparam o noticiário recente. Mas, enquanto Michelle é chamada de “Micheque” em referência a um fato sobre ela mesma – o caso das rachadinhas -, para Janja, as acusações de corrupção são, na verdade, contra Lula. Não há, em nossa análise, casos que remetem à vida política de Janja após ter se tornado esposa do ex-presidente”, comenta Fernanda K. Martins, diretora do InternetLab e uma das responsáveis pela pesquisa. 

No Instagram, a corrupção é a principal narrativa adotada pelo público, citada em 593 comentários, 518 em posts de Michelle Bolsonaro.
No Instagram, a corrupção é a principal narrativa adotada pelo público, citada em 593 comentários, 518 em posts de Michelle Bolsonaro.
Foto: Reprodução

As outras formas mais frequentes de hostilidade à primeira dama são insultos (16%), com comentários hostis e expressões como “ridícula”, “patética”, “hipócrita”, “mentirosa” e “vai se foder”. Aparecem menos, mas também foram registrados, ataques e insultos de inferiorização, intolerância religiosa, ofensa ou assédio sexual, descrédito intelectual, nojo e capacitismo/psicofobia.

“Sabíamos desde o começo da campanha que a presença de Janja e Michelle seria fundamental para o andamento das eleições. A surpresa foi percebermos que o nível de agressões a Janja foi crescendo após o primeiro turno e, na rede em que ambas estão (Instagram), os ataques a Janja são proporcionalmente maiores. Talvez isso nos permita assumir que no Instagram os insultos e ataques vêm principalmente de eleitores bolsonaristas”, complementa Martins. 

A INFLUÊNCIA DO DEBATE RELIGIOSO

Além de ser um dos principais motivos de ataque a Janja da Silva, o debate em torno da fé e das crenças foi central, e marcou de maneiras diferentes as duas campanhas. 

No Instagram, quase 500 comentários circundam narrativas religiosas (13%), e quase não há ofensas. Já no Twitter, entre os 280 comentários com esse tema dirigidos a Janja, quase metade usam a religião para atacar a esposa de Lula (132 tuítes ou 47%).

O emprego de temas religiosos para polarizar o debate político não é uma novidade. “A religião é um dos aspectos onde a esfera privada invade a esfera pública e toma conta, inclusive, das instituições democráticas em nome de uma bandeira religiosa, em um país laico. Assim como a religião, a mulher também está historicamente na esfera privada. Então, é comum usar a fé para atacar a mulher, para que isso possa “respingar” no homem”, aponta a historiadora Dayanny Rodrigues.

Nesta eleição em particular, as campanhas vêm manipulando diferentes elementos religiosos para conquistar o eleitorado católico e evangélico. Enquanto Janja viajou a Belém para o Círio de Nazaré, Michelle apostou em mudanças na aparência para reforçar a estética associada a mulheres evangélicas. “Para Michelle, a religião é uma ferramenta de defesa e até as roupas dela comunicam isso — saia abaixo do joelho, não tem decote, o corte de cabelo mudou. Bolsonaro é mais velho, então, ela não pode ter uma imagem de jovialidade. Já para Janja é uma questão de ataque, justamente por ser o contraponto a algo que Michelle tem em exagero”, explica Rodrigues.

Os lugares ocupados socialmente pelas religiões no Brasil também contribuem para este efeito, de acordo com Jacqueline Teixeira. Segundo ela, graças aos referenciais históricos sobre “a posição da religião na construção de perfis políticos com senso ético para lidar com a política, as religiões africanas ainda estão muito à margem”. Na prática, isso significa que as falas religiosas contra Janja são lidas como algo aceitável. Paralelamente, o repetido posicionamento “terrivelmente evangélico” de Michelle Bolsonaro “faz com que ela seja protegida dessa violência ética, pois tudo que tem a ver com sua imagem pública gera um senso de proteção e cuidado”. 

CENTRALIDADE DAS ESPOSAS NA CAMPANHA

As discussões sobre gênero foram centrais na campanha eleitoral em 2022. O eleitorado feminino é alvo de ambos os candidatos no segundo turno e poderá ser decisivo para o resultado do próximo domingo (30). Explorar a figura das esposas foi uma das estratégias, tanto de Lula quanto de Bolsonaro, para alcançar as eleitoras, dando às duas protagonismo na corrida presidencial. 

Janja começou a ganhar projeção antes mesmo do casamento, quando participou ativamente da vigília Lula Livre, no período em que o ex-presidente estava preso em Curitiba. Michelle aparece como um braço eleitoral importante para Bolsonaro para dialogar com mulheres e evangélicos, mas também como apaziguadora de conflitos, segundo a historiadora. “O movimento é sempre o mesmo: o presidente fala alguma bobagem ou agride uma mulher verbalmente, e a primeira-dama aparece em seguida para amenizar a situação, dizer “é o jeito dele”, e testemunhar que ele é um marido e um pai excelente”, pontua Rodrigues.

“O “primeiro-damismo” foi definido como um fenômeno político, caracterizado por um conjunto de práticas exercido pelas esposas de governantes em exercício. Ele pode ser apontado como estratégia, quando as primeiras-damas buscaram legitimar a ideologia ou o projeto político do esposo, mas também como tática". Dayanny Deise Leite Rodrigues, em sua tese de doutorado

Na história da República brasileira, outras esposas de candidatos contribuíram para trazer seriedade e testemunhar o caráter e a religiosidade dos maridos, conforme afirma Rodrigues, que desenvolveu sua tese de doutorado em torno do conceito de “primeiro-damismo”. 

Ela ressalta que, embora tenham havido primeiras-damas coadjuvantes no país que, há pelo menos um século, esposas de presidentes vêm encontrando brechas para desenvolver atividades que vão além da figuração. Darcy Vargas, Sarah Kubitschek, Rosane Malta, Ruth Cardoso e Marisa da Silva são alguns exemplos de mulheres que exerceram protagonismo, mas cujo trabalho ficou à sombra dos maridos. 

Embora a pauta de assistência social de Darcy Vargas seja amplamente associada às primeiras-damas, há anos elas vão além disso. “Elas agora têm o público feminino para dialogar, somos mais de 50% do eleitorado. Quem começa a fazer esse movimento é Ruth Cardoso, que rompe com o primeiro-damismo assistencialista, e inaugura um modelo. Muitas das políticas de inclusão social a partir do governo FHC têm como mentora intelectual sua esposa, considerada a mãe da antropologia urbana no Brasil, professora da USP, mas que não tem tanta visibilidade porque era primeira-dama”.

Assim como elas, a primeira esposa de Lula, Marisa Letícia, e mais recentemente, a própria Michelle Bolsonaro, buscaram desatrelar a imagem da primeira-dama da coordenação de iniciativas de assistência social. 

No caso de Michelle, a principal bandeira levantada é a das deficiências físicas e intelectuais, não sem muita polêmica e rejeição no próprio campo das pessoas com deficiência. Rodrigues vê essas atuações como um movimento que não deve retroceder. “Não há mais como deixar as mulheres por trás dos holofotes. Elas nunca estiveram ali porque não quiseram ocupar o protagonismo, mas porque a sociedade as colocava ali”, conclui.

Metodologia

Janja da Silva, esposa de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem 367,8 mil seguidores no Twitter. No Instagram, Michelle Bolsonaro, casada com Jair Bolsonaro (PL), tem 4,4 milhões de seguidores, enquanto Janja tem 343 mil. Entre 26/09 e 09/10, o MonitorA coletou 38.017 tweets que mencionavam Janja. No Instagram, foram coletados, 30.596 comentários em posts no perfil de Janja e 239.108 no de Michelle Bolsonaro. Selecionando somente os potencialmente ofensivos – ou seja, os que contém pelo menos um dos termos do léxico do MonitorA – restaram 3.025 tuítes e 305 comentários sobre Janja, e 3.178 comentários sobre Michelle. Estas interações, num total de 6.498, foram analisadas uma a uma. Ao final da análise, foram encontradas 1.078 palavras ofensivas - 799 para Janja e 273 para Michelle.

Clique aqui e acesse o link da reportagem original.

AzMina
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