Mães-solo sim, sozinhas não: mulheres negras são importantes redes de apoio para puérperas
O aquilombamento feminino é historicamente comum na diáspora africana e serve como ferramenta de afeto, bem viver e acolhimento para mulheres que enfrentam a maternidade sem a presença do pai da criança O post Mães-solo sim, sozinhas não: mulheres negras são importantes redes de apoio para puérperas apareceu primeiro em AlmaPreta.
Em um país com cerca de 11 milhões de mães-solo, segundo dados da Agência Brasil, poder contar com uma rede de apoio é considerado uma estratégia de Bem Viver, especialmente para a população negra feminina, que corresponde a 6,9 milhões de mulheres com a responsabilidade de criar seus filhos sozinhas, sem a participação do pai da criança.
Às vezes, essa rede faz parte da família. Em outras ocasiões, o apoio provém de amigos e pessoas próximas, que buscam suprir as necessidades dessas mães-solo mesmo em meio às dificuldades financeiras. É o que explica a historiadora e mestra em sociologia Janete de Almeida.
"Historicamente, as mulheres negras se aquilombam para educar crianças juntas, pois a rotina de trabalho extensa e o abandono paterno é uma situação que assola essas mulheres desde o regime escravagista", salienta.
Janete explica que durante o período colonial, quando uma mulher negra dava à luz e passava pelo período conhecido como puerpério, outras escravizadas realizavam o seu trabalho para que ela pudesse repousar nesse momento. As refeições eram reforçadas no intuito de que essa mulher pudesse amamentar e tudo era compartilhado para garantir uma boa dieta para a puérpera.
"A gente vem de uma tradição ancestral em que mulheres apoiam, acolhem, ensinam e fortalecem outras mulheres. E mesmo após o fim da dita escravidão, esse costume pode ser visto em comunidades periféricas até os dias de hoje", pondera a historiadora.
Acolher, ensinar e proteger as puérperas
A maternidade solo, segundo a psicóloga Juliana Cardoso, é complexa, especialmente quando se trata da primeira gravidez de uma mulher. Quando se aplica o fator racial às mais diversas situações que essas mães-solo passam durante o pós-parto, a condição de saúde mental dela precisa ser assistida de perto, a fim que não haja o desenvolvimento de problemas, como a depressão e a ansiedade.
"Nesse momento cabe a rede de apoio o trabalho de acolher essa mulher, ensiná-la a viver da melhor maneira possível essa fase e protegê-la da exaustão física e mental. Estamos falando de mulheres negras, presentes em todas as estatísticas sobre violência obstétrica do Brasil", descreve a psicóloga.
Segundo o artigo "A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil", feito pela pesquisadora Maria do Carmo Leal, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mulheres negras têm 50% de chances a menos de receber anestesia durante o parto, possuem maior risco de ter um pré-natal inadequado, têm maior peregrinação entre maternidades - buscando mais de um hospital no momento de internação -, e frequentemente estão sozinhas, com ausência de acompanhante durante o parto.
"Logo, contar com outras mulheres negras que infelizmente já passaram por tais situações ou entendem o racismo estrutural é uma importante ferramenta de acolhimento, transmissão de saberes e garantia de uma existência materna digna, apesar das adversidades inevitáveis do parto e do puerpério", completa Janete.
Vizinhança solidária
Carlla Santos da Silva é uma das mães-solo que compõem a estatística nacional. Aos 15 anos, a jovem moradora do Grajaú (SP) deu à luz ao seu filho em setembro de 2023. O pai da criança foi preso durante o primeiro trimestre da gestação de Carlla, restando a ela apenas o apoio de sua mãe e vizinhas - tanto durante o pré-natal como no puerpério.
À Alma Preta Jornalismo, a estudante conta que sofreu muito para ganhar bebê. Sendo submetida a um parto normal induzido, a adolescente ouviu diversos comentários maldosos - proferidos pelos profissionais de saúde - durante suas horas de internação.
"As enfermeiras me diziam para não gritar, senão iam me deixar sozinha. Não deixaram a minha mãe assistir o parto. Eu cheguei na maternidade sem dilatação. Fiquei 18 horas no induzido. E para o Valentim [filho] nascer, me cortaram muito. Tomei 21 pontos, mais do que se tivesse sido cesárea", relembra a jovem.
Ao chegar em casa, ainda muito debilitada e com mobilidade reduzida, Carlla contou com o apoio de vizinhas, que se revezavam entre ajudá-la com as tarefas de casa, realizar a assepsia da sua cirurgia, cuidar do recém-nascido para que ela descansasse e pegar na escola as matérias das aulas, para que ela não perdesse o ano letivo.
"Eu não sei o que seria de mim se não fosse a minha mãe e as minhas vizinhas. Elas me ensinaram tudo e até hoje me ajudam. De verdade, eu percebi que literalmente o filho é só da mãe e que só mulheres ajudam mulheres. Até comida na cama me trouxeram, me ajudaram a dar de mamar. Elas [vizinhas] supriram tudo, todas me trataram como filha", emociona-se a jovem.
"Só mulheres negras me ajudaram"
A vida de Joyce Cristina Araújo, de 19 anos, virou de cabeça para baixo quando ela descobriu que estava grávida. Um mês após completar o ensino médio e a maioridade, veio a notícia da gravidez. Nascida em Porto Alegre (RS), ela foi criada em um lar religioso. Aos 18 anos por pressão familiar e da igreja, Joyce se casou e mudou de cidade, para o município de André da Rocha, interior gaúcho. No entanto, ao descobrir a gravidez, foi abandonada pelo pai da criança, um homem 29 anos mais velho do que ela.
"Quando eu falei que estava grávida ele simplesmente disse que ia visitar a família no Ceará para dar a notícia do bebê e nunca mais voltou ou deu notícias. Me bloqueou em tudo, simplesmente sumiu", relembra. "Me senti uma idiota, com a minha família contra mim. Uma solidão total porque eu não conhecia ninguém na cidade e meus pais não queriam de volta em casa", acrescenta.
A gravidez de Joyce foi muito conturbada e de risco. Há mais de 200 km da sua família - que a culpabiliza pelo abandono do marido -, ela diz que se deu conta de que mulheres negras sofrem violência obstétrica durante seu trabalho de parto. Ao completar oito meses de gestação, Joyce sofreu uma queda e perdeu líquido amniótico. Assustada, foi para o hospital às pressas, local em que foi vítima de diversas violências.
"Perguntaram [enfermeiros] o que eu tomei para abortar, porque eu estava com sangramento. Zombaram que ia nascer mais um pretinho sem pai. Foi só quando mudou o plantão e veio uma enfermeira negra que eu fui bem atendida. Ela cuidou de mim, quis saber da minha história, passou o telefone dela e me ajudou no pós-parto", relata.
"A Maria Helena [enfermeira] me falou que era para eu não me sentir mal, pois as pessoas do Rio Grande do Sul eram racistas mesmo e que no final éramos nós por nós. Ali eu percebi que era negra, que era pobre, uma dentre tantas mães-solo por aí, que sofria preconceito. Se não fosse ela eu não sei como faria", relembra.
Após a alta, Joyce conta que a enfermeira a ajudou no puerpério. Nas visitas, Maria Helena levava sua filha e sua irmã mais velha para auxiliar a jovem. Segundo Joyce, a amizade com as três mulheres negras dura até hoje. "Sou muito grata por elas aparecerem na minha vida. Só mulheres negras me ajudaram e me deram força. Vou guardar esse ensinamento para sempre", diz.
Lições da ancestralidade
"Mesmo mães-solo que não têm letramento racial compreendem que o apoio vindo de outras mulheres negras é sagrado e faz parte de seu DNA. As atitudes de uma comunidade feminina marcam o imaginário dessa mãe, o que a faz passar isso para frente. Ou seja: o apoio comunitário, trazido na diáspora, é uma forma de perpetuar a ancestralidade negra de mulheres que se ajudam. É uma sábia estratégia de bem viver", explica a historiadora Janete de Almeida.
Aos 81 anos, Maria do Rosário é parteira. O ofício foi passado de geração em geração, começando por sua bisavó, que foi escravizada.
"Sei trazer menino para o mundo de um jeito que não faça a mulher sofrer mais do que precisa. Quando tiver que ir ao hospital, eu vou junto. Se o bebê decide nascer em casa, eu corro lá. Ajudo. Ensino a menina a dar o peito. A trocar. Muitas não tem ninguém para ajudar", conta.
"Eu já vi médico desfazendo de uma mulher porque ela era preta, chamando de 'fedida' e 'suja'. E aqui [Várzea Nova/BA] a gente é muito simples. Então, mesmo com a idade, eu ainda posso ajudar em uma coisa ou outra. Minha mãe aprendeu com a minha avó, que aprendeu com a mãe dela. E eu continuo enquanto Deus permitir", completa a parteira.
A cidade baiana de Várzea Nova tem cerca de 13 mil habitantes. E nas contas de Dona Maria do Rosário, boa parte dos moradores nasceram com o auxílio de suas mãos.
"Perdi as contas quando chegou no 300. Mas muita gente veio para esse mundo com a ajuda dessa velha aqui. Minha mãe teria orgulho de mim, por que eu não deixei morrer os ensinamentos que ela passou. Há mais de 45 anos perdi minha mãe, e até hoje lembro de tudo que ela me ensinou", descreve.
A psicóloga Juliana Cardoso finaliza dizendo que mais do que bem viver, a união e o acolhimento entre mulheres negras é um símbolo de resistência.
"Aquilombar para garantir às mães-solo um puerpério digno e pleno é um exercício valioso para a saúde mental, de quem se doa e de quem recebe. É um ato político, de amor, que afirma nossa identidade e negritude".
MA'AT O Bem Viver Na Consciência Negra. Este conteúdo faz parte de uma série baseada no Bem Viver, movimento baseado nos conhecimentos ancestrais, colaborativismo e equilíbrio ambiental. Uma forma de repensar a exploração do trabalho e a fruição da vida.
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