Maioria no elenco atual, jogadores negros foram excluídos da Seleção há 100 anos
Em 1920, o presidente da República, Epitácio Pessoa, recomendou a exclusão de profissionais negros da Seleção para 'preservar' a imagem do Brasil no exterior
Se hoje os jogadores negros são a maioria na seleção brasileira, há pouco mais de 100 anos atrás isso seria impossível. Isso porque em 1920, uma determinação do então presidente da República, Epitácio Pessoa, barrou o ingresso de profissionais negros na seleção brasileira. O motivo? Os atletas tinham sido vítimas de racismo na Argentina e o presidente precisava preservar a imagem do país no exterior.
A história começa em 1919, quando a seleção, encabeçada pelo artilheiro negro Arthur Friedenreich, conquistou o título inédito do Campeonato Sul-Americano, equivalente à atual Copa América, contra o Uruguai no Estádio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Com a ascensão do futebol brasileiro, a expectativa era do Canarinho levar mais uma vitória para casa no ano seguinte.
Leia mais: De excluídos à maioria: a história dos jogadores negros brasileiros na Copa
Em 1920, o Sul-Americano foi sediado no Chile e a seleção brasileira conquistou a vitória no primeiro jogo, porém, sofreu a maior goleada na história do futebol brasileiro. O time foi derrotado pelo antigo adversário, o Uruguai, por 6 a 0. Antes de retornar ao Brasil, a seleção foi à Argentina disputar um amistoso quando os atletas negras foram vítimas de racismo após a publicação de uma manchete que retratava os jogadores como macacos.
Publicada pelo jornal "La Critica", a charge, com o título "Macacos em Buenos Aires", trazia uma série de ofensas racistas assinada pelo jornalista Antonio Palacio Zino com ilustração do argentino Diógenes Taborda.
"Já estão os macaquitos em terra argentina. Esta tarde teremos que acender a luz às 4 da tarde para vê-los. (...) Se há uma gente que nos parece altamente cômica é a brasileira. São elementos de cor que se vestem como nós e pretendem se misturar à raça americana, gloriosa por seu passado e grande por suas tradições", cita um dos trechos da matéria.
Revoltados com a situação, os jogadores se recusaram a participar do amistoso e fizeram um protesto por causa da publicação. Com o time desfalcado, o resultado em campo não poderia ter sido diferente: a seleção perdeu por 3 a 1.
No ano seguinte, o Brasil retornou à Argentina para disputar mais uma Sul-Americana, só que dessa vez o perfil do time era composto só por atletas brancos. A decisão de vetar os jogadores negros foi tomada pelo então presidente Epitácio Pessoa que, em reunião com a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), não se posicionou contra os ataques racistas e decidiu exportar um outro perfil do Brasil, como conta o diretor-executivo e criador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho.
"Ou seja, ao invés de se preocupar em combater o racismo e proteger os jogadores negros, o presidente quis mostrar um outro Brasil que não existe", conta Carvalho.
Não há registros oficiais sobre a determinação do presidente Epitácio Pessoa, no entanto, Marcelo Carvalho destaca que a própria ausência de atletas negras foi o suficiente para compreender a conduta racista. "Algumas pessoas contestam que essa determinação não existe e que o Friedenreich não foi porque estava machucado, mas o irmão dele também não foi. Então isso prova que de fato existiu racismo", destaca.
Com a decisão, um dos atletas impactados foi Arthur Friedenreich, que não foi convocado. Filho de pai alemão e de uma mãe negra, o artilheiro foi considerado o primeiro ídolo nacional do futebol brasileiro, conquistando mais gols do que a média de Pelé: foram 595 gols em 605 jogos.
Com o baixo desempenho do Brasil no torneio de 1921, no ano seguinte a CBD decidiu derrubar o veto e voltou a convocar os atletas negros para a seleção. Na disputa, realizada no Rio de Janeiro, o time conquistou o campeonato e levou o segundo título do Sul-Americano para casa após a vitória contra o Paraguai.
Falta de representatividade na gestão esportiva
Para Marcelo Carvalho, idealizador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, apesar dos avanços no combate ao racismo dentro e fora dos campos, ainda é preciso questionar a estrutura da gestão esportiva e a falta de representatividade de pessoas negras dentro dos espaços de decisão.
"O impacto que a gente mais percebe é que a não presença de pessoas negras nos espaços de gestão, de poder dentro do futebol faz com que os casos não sejam punidos. Porque a interpretação, muitas vezes, dos tribunais de justiça desportiva é que os casos de racismo não são graves [...] Isso é reflexo de um tribunal composto por 99,9% de homens brancos, então a gente tem um problema quando estamos falando de punir os agressores", comenta o pesquisador.
Só em março de 2022, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) elegeu o primeiro presidente negro e nordestino após os seus 107 anos de criação. O presidente eleito, Ednaldo Rodrigues, é baiano, nascido na cidade de Vitória da Conquista, e irá comandar a CBF até 2026.
Além de monitorar casos de racismo no esporte, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, criado em 2014, também tem como finalidade acompanhar os desdobramentos e cobrar punições para os casos de racismo.
"O racismo no futebol brasileiro é muito recorrente, é muito presente, mas não só pelos casos, ele existe principalmente porque a gente não tem pessoas negras nos cargos de gestão e de comando à frente do futebol", diz Marcelo Carvalho, idealizador da iniciativa.
Mesmo após os 101 anos da derrubada do veto do presidente Epitácio Pessoa, atletas negros ainda são vítimas de ofensas racistas dentro e fora dos campos. Um dos destaques da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2022, Vinicius Júnior, tem se posicionado contra ataques racistas no esporte. Em setembro deste ano, a dança do atacante durante a comemoração de um gol durante uma partida entre o Real Madrid e Atlético de Madrid, foi alvo de comentários racista pelo comentarista espanhol Pedro Bravo, que comparou a comemoração com "fazer macaquices". Nas redes sociais, Vinicius Júnior rebateu as ofensas e levantou a hashtag "Baila, Vini Jr", que virou um lema contra o racismo.
Outro caso emblemático é o do jogador da seleção brasileira, Daniel Alves, que em 2014, durante uma partida entre o Barcelona e o Villarreal, na Espanha, comeu uma banana que foi jogada no campo durante a sua atuação.
Segundo Marcelo Carvalho, além do investimento em pessoas negras dentro da estrutura do futebol, também é preciso a adoção de punições efetivas e em medidas educativas dentro dos estádios.
"A gente precisa pensar em medidas de conscientização e de educação. A gente precisa usar o futebol para conscientizar a sociedade sobre o que é o racismo e como ele afeta a população", finaliza.
Didi: o único técnico negro brasileiro em Copas nunca treinou o Brasil