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Memória Trans: Brenda Lee, 'anjo da guarda das travestis'

Nascida em Pernambuco, Brenda foi pioneira na luta contra a AIDS no Brasil

30 nov 2022 - 05h00
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Brenda Lee com Hebe Camargo
Brenda Lee com Hebe Camargo
Foto: Reprodução

Atualmente pessoas trans e travestis conquistam cada vez mais espaço na sociedade ocupando espaços que historicamente foram negados para essa população. Em 2022, por exemplo, o Brasil elegeu suas duas primeiras deputadas trans para o Congresso Nacional com Erika Hilton e Duda Salabert. Além disso, neste ano a cantora Liniker também tornou-se a primeira mulher trans a ganhar Grammy Latino. Essas conquistas, entretanto, só foram possíveis devido a décadas de luta de movimentos sociais e ativistas trans que reivindicavam direitos a uma vida digna e, para celebrar essa luta e transcestralidade, o mês de novembro é marcado pelo Dia Internacional da Memória Trans.

Brenda Lee nasceu em Bodocó, Pernambuco, em 10 de janeiro de 1948 e tornou-se pioneira na luta contra a AIDS no Brasil, sendo conhecida como "anjo da guarda das travestis". Aos 14 anos se mudou para a cidade de São Paulo, no bairro do Bexiga, onde anos depois comprou uma casa e fez o chamado "Palácio das Princesas", que se tornou a primeira casa de apoio para pessoas com HIV/Aids do país nos anos 1980.

O mestre em Psicologia Social Ubirajara Caputo, que estudou a vida de Brenda Lee e, inclusive a conheceu pessoalmente, descreve a ativista como "uma pessoa muito simples e que não era formal" e contou com exclusividade ao Terra NÓS um pouco de sua trajetória.

"Ela vivia com a mãe e dois irmãos, mas não se sentia à vontade para assumir uma performance feminina dentro do ambiente familiar e por isso buscou fazer um percurso solo. Chegou até a fugir da família e depois retomou o contato para poder viver a vida como ela queria", relembra.

Depois de sua chegada em São Paulo, Brenda Lee chegou a trabalhar como vendedora e cuidadora de idosos, mas percebeu que devido ao fato de ser uma mulher trans não conseguia muitas chances no mercado de trabalho. Foi então que ela começou a trabalhar por conta própria em alguns empreendimentos como oficina e restaurante para, além de conseguir sobreviver, também dar início ao "Palácio das Princesas" em sua própria casa, o primeiro centro de acolhimento para pessoas com HIV no Brasil.

A ativista trans Brenda Lee, cuidando de pacientes soropositivas
A ativista trans Brenda Lee, cuidando de pacientes soropositivas
Foto: Divulgação

"Depois dos empreendimentos ele foi vendendo algumas coisas para investir na casa de apoio, que demorou quase dois anos para conseguir algum apoio do Estado. Então ela custeava tudo como podia e também recebia ajuda de algumas amigas travestis que estavam na França e mandavam algum dinheiro para ajudar a custear. Sem muita ajuda foi basicamente o patrimônio dela que foi deslocado para a casa de apoio", conta Ubirajara.

O estudioso também conta que a casa de apoio não foi algo planejado por Brenda. Ela já possuía um pensionato e com o constante aumento de casos de HIV no país, atingindo sobretudo trabalhadoras sexuais e mulheres trans e travestis, um caso de violência foi o que motivou a ativista a criar a casa de acolhimento.

"Tinha algumas meninas do pensionato que foram agredidas na calçada e uma delas faleceu. A outra ficou muito doente e ela acolheu essa menina que estava de cama e não tinha ninguém que olhasse por ela. Essa menina morava com a Brenda e perguntou se ela aceitaria pessoas vivendo com HIV em sua casa, e a partir daí o próprio Estado procurou a Brenda para cuidar das pessoas fora do ambiente hospitalar. A partir dali ela embarcou nisso como se fosse a tarefa da vida dela, sentir que era uma missão. A Brenda também tinha o desejo de ter um lugar em que ela e as travestis pudessem viver em paz, então ela já tinha essa noção de comunidade identificando ela e as travestis, então o coração dela embarcou nessa missão e o advento da AIDS possibilitou que tivesse o centro de acolhimento".

Ele também relata que a ativista era uma pessoa "que tinha uma voz de liderança muito forte na casa", afirmando que quando as mulheres e travestis acolhidas no "Palácio das Princesas" apresentavam uma melhora e queriam "curtir a vida" eram de certa forma impedidas por Brenda.

"Ela levava a casa com rédea curta para não virar bagunça. Tinha um pulso firme mas também era muito doce. A principal característica dela era a empatia, se identificava com as pessoas e cuidava como uma mãe, ela tinha vocação para cuidar. Tinha pouca instrução formal mas era muito doce no trato e dedicada ao que fazia".

A atuação de Brenda Lee fez que fossem firmadas parcerias com órgãos como a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo e o Hospital Emílio Ribas para aprimorar o atendimento e tratamento aos pacientes soropositivos.

A ativista foi assassinada aos 48 anos, em 1996. No dia 28 de maio foi encontrada morta dentro de uma kombi, com marcas de tiros na boca e no peito. A polícia chegou a prender os irmãos Gilmar Dantas Felismino, ex-funcionário de Brenda, e José Rogério de Araújo Felismino, na época policial militar, pelo crime. O motivo seria um golpe financeiro que o funcionário tentou dar na ativista e que teria sido descoberto.

Em 2008, anos após sua morte, foi criado o Prêmio Brenda Lee, concedido quinquenalmente por ocasião das comemorações do Dia Mundial de Combate à Aids e aniversário do Programa Estadual DST/AIDS do Estado de São Paulo.

Musical 'Brenda Lee e o Palácio das Princesas'

Elenco do musical 'Brenda Lee e o Palácio das Princesas', de Fernanda Maia
Elenco do musical 'Brenda Lee e o Palácio das Princesas', de Fernanda Maia
Foto: Ale Catan/Divulgação / Estadão

A vida e a trajetória de Brenda Lee foram retratados recentemente no musical “Brenda Lee e o Palácio das Princesas”, produzido pelo grupo Núcleo Experimental. O elenco do musical era formado por seis artistas travestis e, devido a pandemia da covid-19, em um primeiro momento ficou em cartaz no formato online dos meses de setembro até novembro de 2021. Neste ano, com o avanço da vacinação, o espetáculo também ficou em cartaz no teatro Núcleo Experimental, no bairro Barra Funda, em São Paulo, nos meses de junho, julho e agosto.

Além da trajetória de Brenda, o musical narra também a trajetória de cinco de suas "filhas" em meio à epidemia de Aids e à perseguição policial às travestis em São Paulo. A travesti Verónica Valenttino foi quem deu vida a Brenda Lee no espetáculo e falou ao Terra sobre a importância de manter a memória da ativista viva.

"Somos corpos subversivos e travestis, filhas rejeitadas da sociedade e desse país que é o que mais mata pessoas trans no mundo então é importantíssimo a gente manter viva a nossa memória e a nossa história. temos que fazer com que nossa história se perpetue e chegue aos corações das pessoas. O que mais me toca nesse papel é poder honrar as travestis que lutaram e foram pioneiras na luta por nossos direitos", diz.

Valenttino também falou sobre a representatividade que o musical traz, com a maioria do elenco sendo formado por travestis, e comemorou a possibilidade de que corpos dissidentes possam estar ocupando espaços historicamente negados dentro da arte e da cultura.

"É importantíssimo quando se narra nossa própria história que ela seja narrada e contada por corpos como aqueles dos quais estamos falando. Para além da importância da representatividade também é importante a gente tomar esse protagonismo sobre nossa própria narrativa, história e transcestralidade. É sempre importante reforçar a força e potência que tem uma travesti representando Brenda Lee", finalizou.

O musical venceu o Prêmio Bibi Ferreira de Teatro 2022. Veja os momentos da premiação:  

Dia da Memória Trans

A data busca chamar a atenção para a contínua violência e violação de direitos enfrentados pela população trans e foi escolhida para homenagear Rita Hester. Ela era uma mulher trans e negra que foi brutalmente assassinada aos 34 anos de idade. Seu corpo foi encontrado no dia 28 de novembro de 1998 em seu apartamento em Massachusetts, nos Estados, com 20 facadas e, diante do descaso da mídia e das autoridades com seu assassinato, ativistas fizeram uma vigília à luz de velas do dia 29 de novembro até 4 de dezembro.

No ano seguinte a ativista trans Gwendolyn Ann Smith fez uma homenagem para Hester em 20 de novembro e, desde então, a data celebra o Dia Internacional da Memória Trans, que inclui uma leitura dos nomes daqueles que perderam a vida de 20 de novembro do ano anterior a 20 de novembro do ano atual. No Brasil, uma das maiores ativistas da causa foi Brenda Lee e, por isso, faz-se necessário relembrar sua luta e transcestralidade nesta data, que de alguma forma permitiram o avanço na luta por direitos de pessoas trans e travestis no Brasil.

Fonte: Redação Nós
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