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Menos rótulos, mais empatia: esse é o Dia do Orgulho Agênero

19 de maio é a data oficial de celebração e orgulho para pessoas agênero: que não se identificam com gênero algum

19 mai 2022 - 05h00
(atualizado às 13h53)
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Bandeira do orgulho agênero, criada por Salem Fontana, em 2014. O preto e o branco representam a ausência de gênero; o cinza representa a ausência parcial de gênero; o verde simboliza os gêneros não-binários.
Bandeira do orgulho agênero, criada por Salem Fontana, em 2014. O preto e o branco representam a ausência de gênero; o cinza representa a ausência parcial de gênero; o verde simboliza os gêneros não-binários.
Foto: Divulgação

Mar ainda era criança quando, ao brincar com os colegas, meninos e meninas, quis fazer xixi em pé, como eles. Os anos foram passando e, cada vez mais, o interesse por “coisas de menino” a fizeram perceber que a “menina” ali biologicamente definida não se restringia às normas determinadas para o sexo feminino, mas ia além, queria transitar entre os gêneros, ser livre.

Foi dessa forma que Mar Maxwell, de 34 anos, foi descobrindo sua identidade. Não a que estava registrada em documentos, mas a que fluía de dentro dela. E foi há pouco tempo, após a quarentena provocada pela pandemia de coronavírus, que teve certeza de ser uma pessoa agênero, ou seja, nem homem, nem mulher. Ou homem e mulher ao mesmo tempo.

Mar Maxwell já testou uma aparência dita mais masculina, mas não se identificou. Hoje, busca a neutralidade.
Mar Maxwell já testou uma aparência dita mais masculina, mas não se identificou. Hoje, busca a neutralidade.
Foto: Mar Maxwell/Arquivo Pessoal

Ela, ele, elu… Para Mar, o pronome de tratamento que as pessoas vão usar não muda o que ela é, por isso aceita os três. Mas quando foi perguntada por uma criança no supermercado se era uma menina ou um menino, a resposta foi: “Sou os dois”, porque é assim que se define para os outros e para si mesma.

“Eu uso os três pronomes e deixo as pessoas à vontade para se definirem a mim como elas se sentirem mais confortáveis. Normalmente usam ela, por eu ainda ser uma figura muito feminina, tenho seios grandes naturalmente. A única mudança que fiz foi no meu nome, retifiquei para um nome neutro, meu nome é Mar no RG, e adicionei o nome do meio do meu pai, Maxwell”, conta.

O uso do pronome para se referir às pessoas agênero é apenas um dos entraves que elas enfrentam por quererem ser mais do que homens e mulheres em acordo com as expectativas sociais. O preconceito, desrespeito, discriminação, a exclusão dos  ambientes familiares, corporativos e políticos são barreiras ainda muito presentes na vida delas.

Mar, por exemplo, diz que sempre foi rotulada por ter determinados gostos, mas encontrou ao longo da vida espaços que poderia ocupar, e ocupou, até mesmo na igreja que frequenta, onde existe um grupo ligado à causa LGBTQIA+. “Eu tive muito ruído da sociedade na minha vida. Por exemplo, por eu gostar de futebol, achavam que eu era lésbica; por eu gostar de maquiagem, as pessoas assumem que sou mulher cis, e por aí vai. Seios, as pessoas já veem como feminina, mas vejo mulheres trans que têm a mesma coisa que eu e são chamadas de ele. Seria muito mais fácil compreender se não tivéssemos que colocar todo mundo dentro de um rótulo, dentro de uma caixinha”, diz.

Dupla comemoração

Gabriel Oberlin, de 26 anos completos neste 19 de maio, Dia do Orgulho Agênero, concorda com Mar. Para ele, o passo que a sociedade precisa dar para compreender a pessoa agênero é entender os seres humanos como diferentes uns dos outros.

Ele revela que tem um sonho utópico, de que no futuro todas as pessoas sejam agênero não-binárias, e explica. “Acho que a expectativa social para o homem e para a mulher é muito cruel. A mulher tem que amadurecer, casar, criar família, ser dona de casa. O homem precisa prover, ser forte, resiliente. E a realidade não é essa, as pessoas são diferentes, têm suas particularidades. Sonho com uma sociedade onde todas as pessoas nasçam sem essa identificação de gênero e construam de acordo com as experiências e vivências delas. Acho que o mundo perfeito seria esse”, conta.

Gabriel Oberlin diz que gosta de se identificar apenas como "ser humano" e transitar entre os gêneros livrement
Gabriel Oberlin diz que gosta de se identificar apenas como "ser humano" e transitar entre os gêneros livrement
Foto: Gabriel Oberlin/Arquivo Pessoal

O pensamento de Gabriel encontra eco nas descobertas da psiquiatra Alessandra Diehl, educadora sexual, especialista em sexualidade humana e pesquisadora sobre mulheres, diversidade sexual, gênero e violências.

Ela classifica o gênero como uma construção social do que determinada sociedade entende como masculino e feminino, portanto, a expressão de gênero pode variar. “Trata-se apenas de uma variação dentro da ‘normalidade’, entendida aqui enquanto um conceito matemático de mais frequente ou mais encontradiço ou mais comum. Não se trata da negação de seu ‘sexo’, que é sempre biológico, ou simplesmente um modismo de querer quebrar regras. As pessoas agênero simplesmente são! Em outras palavras, são capazes de transitar entre os gêneros, sem necessariamente se identificar com um destes dois polos binários, que é o masculino e o feminino, que habitualmente conhecemos e que nos restringe”, explica.

Transitar entre os gêneros, fluir, ser (apenas) humano. Quando fala sobre ser agênero, Gabriel Oberlin usa o verbo transitar. Foi dessa forma, transitando entre gostos, comportamentos e objetos que seriam propriamente de menina ou de menino, que ele passou a se identificar com ambos os gêneros, mas recusava rótulos.

Quando criança, ele que foi biologicamente definido como homem, teve brinquedos comumente de meninas, e nunca parou para se questionar se era certo ou errado. A família, majoritariamente composta de mulheres, também percebeu as experiências de Gabriel com normalidade.

Mas foi só em 2016, quando começou a pesquisar sobre gênero fluido e pessoas andróginas, que passou a se identificar com o perfil. “Eu não me questionava porque era algo muito intrínseco em mim, fazia parte das minhas vivências, das minhas relações. Em 2016, comecei a me perguntar se eu também não seria uma pessoa assim, mas até então não era definido para mim. Quando entrei no teatro, em 2020, e interpretei a travesti Dudu do Gonzaga, na peça Memórias Póstumas em Púlpito, foi quando eu falei: ‘Me identifico muito com essa personagem’. É um corpo masculino, que socialmente se identifica como femino, mas não deixa de ser masculino, foi aí que comecei a me enxergar nesse corpo”, relata.

Hoje, Gabriel diz que gosta de se identificar como ser humano, nem homem, nem mulher. “Eu gosto do meu corpo biologicamente masculino, do jeito que ele é. Eu gosto da minha voz, dos meus pelos, da proporção do meu corpo, me acho bonito. Por outro lado, não gosto da expectativa que a sociedade tem sobre o corpo masculino, de ter que ser sinônimo de força, de liderança, tudo o que está guardado numa caixinha para o gênero masculino. Mas não procuro me identificar com a expectativa que a sociedade tem sobre as mulheres também, então gosto da neutralidade. Parece clichê, mas prefiro me identificar como ser humano”.

Dia 19 de maio é comemorado o Dia do Orgulho Agênero
Dia 19 de maio é comemorado o Dia do Orgulho Agênero
Foto: Viktoriia Miroshnikova

A maneira de pensar reflete na maneira de vestir de Gabriel, muito neutra, como diz. A linha divisória dos gêneros ele só ultrapassa em determinadas ocasiões, usando roupas ditas mais masculinas ou mais femininas, a depender do lugar e do estado de espírito. “Eu me visto da maneira mais despojada possível. Acho que só cruzo mesmo a linha quando tenho um evento formal para ir, que é de roupa social masculina. Ou quando tenho uma balada para ir, geralmente vou bem ‘poc’ (exageradamente feminino), mas é muito do lugar. Querendo ou não, tem lugares que não aceitam esse cruzamento de linha de gênero, mas outros super aceitam. Gosto de pensar na roupa como uma expressão artística, quando é para sair da neutralidade, saio de verdade. Se é para cruzar a linha, tem que ser com exagero, eu gosto”, brinca.

Também não há regras para o visual de Mar Maxwell. Ela conta que durante a pandemia, em quarentena, decidiu experimentar roupas consideradas mais masculinas. Comprou peças em um brechó, parou de se depilar e cortou o cabelo. Mas viu que só parte daquela nova proposta de comportamento se encaixou no que se identifica.

“Decidi que não preciso forçar uma imagem exageradamente feminina ou masculina. Eu adoro maquiagem, mas não uso salto, só tenho uma saia e um vestido. Eu não faço uso de hormônios, nem pretendo fazer. Não gosto de pelos, nem pretendo ter barba, é uma coisa que não me faz falta. A única coisa que eu tenho vontade de fazer é diminuir os seios, mas eu tenho muito medo de cirurgia e, por enquanto, acho desnecessário. Seria mais um capricho para as pessoas me verem realmente da maneira andrógina que eu me vejo”, afirma.

Roupas para pessoas

Foi por conta das dificuldades que o irmão enfrentava para comprar roupas que Ana Luiza Voos decidiu criar uma loja com opções de peças sem gênero, que façam as pessoas se sentirem bem ao expressar sua identidade e autenticidade.

O irmão de Ana, Guilherme, é um homem trans, e foi a inspiração do empreendimento que surgiu em 2021 e já faz sucesso no estado onde fica, em Santa Catarina. “Gui, quando mais novo, sofria muito na hora de comprar roupas, pois todas as lojas eram divididas em alas

‘feminina’ e ‘masculina’, e os provadores também. Ele sempre teve um estilo próprio, mas o mundo nunca esteve preparado para isso, pois sempre foi cheio de tabus, inclusive a moda. Devemos vestir algo que nos faça sentir bem, roupas que expressam nossa identidade e autenticidade”, defende.

É a partir dessa proposta, de empresas que buscam atender o público LGBTQIA+, ou seja, a partir da lógica de mercado, que Gabriel Oberlin acredita que seja possível ir quebrando os padrões e preconceitos em relação aos gêneros.

Outra forma de desmistificar a ageneridade é dando visibilidade ao grupo e suas escolhas. A empresária Ana Luiza acredita que quanto mais se falar sobre a moda agênero, mais as pessoas vão ter conhecimento sobre o assunto, mesmo que não concordem.

Legenda: Psiquiatra e especialista em diversidade sexual, Alessandra Diehl ressalta que gênero é uma construção social, e portanto, variável
Legenda: Psiquiatra e especialista em diversidade sexual, Alessandra Diehl ressalta que gênero é uma construção social, e portanto, variável
Foto: Alessandra Diehl/Arquivo Pessoal

A psiquiatra Alessandra Diehl aponta ainda a necessidade de políticas voltadas para o público, que mostrem, por exemplo, que a presença de pessoas agêneros, trans, homossexuais e outras minorias na sociedade brasileira é grande e não é nova, nem gerada por qualquer tendência.

“É importante que a orientação sexual e identificação de gênero estejam entre as pesquisas de censos nacionais como o IBGE, por exemplo. Essa é uma possibilidade mais concreta de dimensionar determinadas minorias sexuais e suas expressões, que podem ou não demandar atenções específicas ou políticas públicas específicas para determinada vulnerabilidade. Essa expressividade agênera enfrenta tanto preconceito como tantas outras minorias. Ouso dizer que talvez enfrentem um pouco mais, porque a sociedade ainda tem dificuldade de pensar fora de ‘rótulos’ e ‘caixinhas’ e, muitas vezes, tendem a julgar agêneros como pessoas indecisas, pessoas que não sabem o que querem, pessoas ‘meio loucas’ ou ainda pessoas ‘perdidas’, e que de fato não são!”, alerta.

Como afirma Mar Maxwell, pessoas agênero são apenas pessoas livres, “vivendo como qualquer outra pessoa da sociedade”. Neste Dia do Orgulho Agênero, 19 de maio, ela faz um pedido: “Exercitem a empatia”. “Se você vê que uma pessoa às vezes se sente melhor de ser chamada por um nome diferente, por um nome que não é o que está nos documentos, se sente melhor em usar um banheiro que às vezes não é o que você enxerga das características secundárias dela, se isso é uma coisa que faz ela viver melhor em sociedade, é fundamental que você exercite a empatia. Você tem que enxergar melhor o outro”, cobra.

Gabriel Oberlin, aniversariante do dia, conta que está pensando em comemorar com uma postagem nas redes sociais. O objetivo: disseminar ideias. “Mostrar sua vivência para as outras pessoas e fazer elas entenderem, se colocarem no lugar. É uma forma de comemorar. Quero  conquistar outras pessoas e disseminar a existência não-binária”, afirma.

Fonte: Redação Nós
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