Mercado para pessoas trans ganha força e é aposta de novas marcas
“Agora consigo nadar em público,” diz criador de prótese para homens trans
Ficar sem camisa na praia, usar uma sunga na piscina, se reconhecer ao olhar no espelho parecem ser algo corriqueiro para homens cisgênero, ou seja, que se identificam com o seu gênero de nascença. Mas para um homem trans a realidade pode ser bem diferente, principalmente por ter que enfrentar olhares tortos e preconceituosos de boa parte da sociedade conservadora.
Até meados de 2014, durante sua transição de gênero, o técnico em mecatrônica e em gestão empresarial Stevan Queiroz enfrentava essas e outras situações e não conseguia encontrar soluções adequadas para se sentir, de fato, bem consigo mesmo. Um ano se passou e em 2015 ele resolveu produzir o próprio packer - uma prótese de silicone em formato de pênis usada para dar volume, proporcionar prazer nas relações sexuais para as duas pessoas e possibilitar o homens trans a urinar em pé. De 2015 a 2016, o jovem, atualmente com 28 anos, foi desenvolvendo o produto até chegar ao resultado que esperava.
Nessa época, ele havia acabado de fazer a mastectomia (cirurgia de retirada dos seios) e percebeu em grupos de WhatsApp que participava sobre o tema, que outras pessoas também tinham as mesmas necessidades que as suas. Foi então que surgiu a ideia de vender os produtos que fabricava de maneira artesanal a um grupo de amigos e conhecidos. Hoje, sua loja, a Transtore Binders, é referência no Brasil na venda de produtos para melhorar o conforto, segurança e autoestima de pessoas trans e do público LBTQIA+ de maneira geral.
“Eu tive muita dificuldade em encontrar formas de me sentir bem com meu próprio corpo. Eu chegava a passar fita isolante no peito para escondê-lo, e não encontrava uma forma confortável de deixar um volume realístico na cueca. Isso atormentava meus dias, me sentia mal ao sair de casa e me sentia impedido de nadar, por exemplo. E por ter essas dificuldades, fiquei sempre procurando maneiras de encontrar soluções. A ideia era uma prótese que deixasse um volume pequeno e realístico, com material que imitasse a pele humana. Agora, consigo finalmente usar sunga, nadar em público e me sinto mais confortável e mais seguro ao sair de casa”, explica o jovem.
Ainda de acordo com o fundador da Transtore, hoje, além das próteses, foram criados diversos outros produtos, como os binders que reduzem o volume do peitoral na roupa, cueca absorvente para o período menstrual, cuecas específicas que ajudam a segurar o packer no dia a dia, cosméticos para estimular o desenvolvimento da barba, dentre outros.
Com olhar focado no e-commerce, o empreendimento conta com mais de 55 mil inscritos no canal do YouTube, 30 mil seguidores no Instagram e no Tiktok. Os principais produtos são os packers e os binders, que têm média de preços de R$180 e R$60, respectivamente.
Queiroz conta que como a maioria dos produtos é feita sob medida, todo o fluxo da venda tem um atendimento personalizado, o que faz com que os clientes voltem para compartilhar a experiência do uso do produto com os funcionários da loja.
“Eles fizeram e fazem muita diferença na minha vida e ver que posso proporcionar o mesmo na vida de outras pessoas é o que me faz me sentir realizado e motivado a continuar contribuindo cada vez mais. Recebemos com frequência relatos de pessoas que não saíam de casa e passaram a se sentir seguros para isso e pessoas que se emocionam por finalmente se sentirem bem com o próprio corpo,” comemora o empreendedor.
Nicho de mercado
André Rattes, pós-graduado em gerência de projetos e atualmente professor da turma de vendas do Senac, ressalta que a abertura e o surgimento de nichos de mercado aumentam a capacidade de emprego para a população. Esse fator, aliado à inclusão social de pessoas que são, muitas vezes, colocadas à margem pela sociedade, é positivo por levar pluralidade ao comércio. Ele argumenta que a presença de pessoas LGBTQIA +, como é o caso de Stevan Queiroz, a frente de negócios direcionados a grupos específicos, contribui para gerar identificação com o público.
“Isso gera representatividade e identificação com a marca, com o produto, com o serviço oferecido e gera um maior engajamento. As pessoas se sentem representadas na figura daquela pessoa que vai compreender melhor quais são as suas necessidades, visto que ela vive ou viveu as mesmas experiências,” pondera o profissional.
Para Matheus ou Marta Araújo, pessoa não binária que, no momento, se identifica como homem ou como mulher, o surgimento dessas lojas significa que a transexualidade está ganhando força, conhecimento e, acima de tudo, respeito.
“Eu, por exemplo, fiz o meu próprio binder. Acho que os produtos para nós trans ainda são pouco acessíveis. Durante um tempo, quando esse assunto chegava até a mim, eu me sentia uma aberração e isso desencadeou depressão e ansiedade por não me entender, por achar que existia algo de errado comigo. Ser trans é libertador”, diz Araújo.
Como surge uma ideia?
Moda inteligente. Esse é o lema que define não apenas a Truccs, como a dona da loja, Silvana da Silva. Ela largou o emprego em um hospital para investir em seu negócio de venda de calcinhas para mulheres transexuais e travestis. Tudo começou há cinco anos. À época, Silva trabalhava como técnica em hemoterapia e se deparava com constantes casos de trans que tinham problemas urinários.
“Isso estava sendo ocasionado devido a ficar segurando a urina por muito tempo para não ter que perder tempo tendo que tirar e reaplicar todos os esparadrapos e adesivos da região genitália. Foi pensando nelas que eu resolvi criar a Trucss, porque aí elas vão ter saúde e vão ter a virilha sem volume. Pensei assim: vou fazer uma calcinha prática e confortável para que elas possam ir ao banheiro a hora que quiserem, viver a vida e se divertir”, relembra a fundadora da Trucss. Empreendedora nata, hoje, Silvana vende, além das calcinhas, maiôs, biquínis, conjuntos, pijamas, lingeries e, claro, sonhos.
“Parabéns por tudo, viu? Da criação até a dignidade multiplicada para todas as mulheres trans! Desejo que sua iniciativa e sua marca sejam conhecidas mundialmente”, disse uma seguidora no perfil do Instagram. “Você é nossa Mary Beatrice Davidson Kenner do século 21”, comentou uma seguidora em alusão a afro-americana que inventou o absorvente. “Sou mulher, cis lésbica, mas, desde já, quero agradecer e desejar boa sorte no seu empreendimento. Tenho amigas trans e drags e sei o quanto essa calcinha é importante”, finalizou outra.
Além da Transtore e a Trucss, o público trans e LGBTQIA+ de maneira geral também pode encontrar uma diversidade de produtos nas lojas Translúdica (São Paulo), no Ateliê Daniel Bel (Santa Catarina), na Sandy Mel Moda Trans (Itajaí), na Olian Moda Trans (Guarulhos) e na Noneca (São Paulo).