Mesmo depois de 20 anos, Kaká di Polly ainda parava a Paulista
Drag queen, que faleceu na última segunda-feira (24), fingiu um desmaio para que a Parada do Orgulho LGBTQIAPN+ pudesse acontecer
A primeira vez em que fui à Parada do Orgulho LGBTQIAPN+ de São Paulo a trabalho foi em 2015. O evento já era um jovem bombado de 18 anos, com uma dezena de trios elétricos, atrações musicais e acumulava números gigantescos de participantes.
Era meu primeiro ano como jornalista e minhas referências enquanto um homem gay eram mais ligadas à minha sociabilização e a uma internet de poucos conteúdos do que à história da minha comunidade propriamente dita.
E foi ali, aos 25 anos, que me deparei com uma drag caminhando a frente da parada. Alta, gorda, com uma pesada maquiagem e um figurino claramente inspirado no filme "Priscilla, a Rainha do Deserto", com sua cabeça repleta de borboletas. Era Carlos Alberto Policarpo, a Kaká di Polly.
Segundo a organização que realiza a Parada, naquele ano, 2 milhões de pessoas foram ao evento, e entre elas, quem me chamou atenção, quem todo mundo parava para olhar, era Kaká.
Inocente e imprudente, a abordei para fazer aquelas perguntas manjadas: "Qual seu nome?", "Como você se sente por estar aqui?", "Quantas vezes você já veio ao evento?", e sem parar de caminhar, ela respondeu direta emendando uma invertida de como a Parada tinha se perdido, que ninguém mais lembrava de nada e que a luta de pessoas como Beto de Jesus tinha sido apagada.
Anotei tudo rapidamente, pedi um registro para o fotógrafo que me acompanhava e corri para a captação de outros relatos. A Parada, para quem trabalha com diversidade, é a Copa do Mundo, são nossas Eleições, a noite do Oscar: não existe tempo para refletir muito, é tudo pra ontem.
Depois, com calma, fui entender quem era Kaká, e me deparei com o relato de algo que eu considerava uma lenda urbana: diziam que uma drag teria se jogado na frente de um ônibus para a primeira Parada de 1997 poder sair. Acontece que de lenda, o fato não tinha nada - ou quase nada.
Em entrevistas, Kaká conta que ao chegar na Avenida Paulista encontrou Beto de Jesus, um dos organizadores do pequeno evento, aos prantos pois a polícia havia suspendido a autorização para que o desfile acontecesse. Foi então que Kaká fingiu um mal súbito, desmaiando em uma das faixas de carro da avenida e liberando passagem para o carro de som e público irem caminhando.
Nos 18 anos seguintes, Kaká continuou participando do evento, mesmo discordando da organização e da falta de memória do público que mal sabia que estavam ali celebrando graças à ela.
Kaká era registro vivo da luta e da cultura LGBTQIA+ e, por mais de 20 anos, foi chamada de "Dona da Noite" por sua marcante presença nas baladas para o público gay nos anos 70 e 80. No longa documentário de Lufe Steffen, "São Paulo em Hi-Fi", ela domina, como dominava tudo.
Como todo mundo, cometeu deslizes. Um dos mais falados, muito em virtude do tempo onde redes sociais amplificam tudo, foi o apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro em 2018. No entanto, não deixou de se desculpar quando se arrependeu do voto.
Nos últimos anos, Kaká vivia mais reclusa, mas ainda ativa nas redes sociais. Seu perfil no Instagram é um divertido recorte de um tempo, composto por homens musculosos, candidatos a Mister, memes, desenhos e mensagens de bom dia.
Ela se foi cedo, aos 63 anos, após uma parada cardíaca durante um exame de rotina. Merecia ter tido mais reconhecimento pela sua contribuição ao mundo.
Costumo dizer que o que faz de mim um homem gay não é eu me relacionar sexual e afetivamente com outros homens, mas, sim, fazer parte de uma comunidade, de uma sociabilização, de uma linguagem, de uma estética, de um humor, e tudo isso que me faz gay só existe porque pessoas como Kaká existiram e resistiram.