‘Minha família não aceitava meu tratamento psiquiátrico’, diz vítima de psicofobia
Racismo e estigma contra pacientes com transtornos mentais afeta saúde mental da população negra
“Você não precisa de remédio, você não é louco”. Felipe *, de 37 anos, já perdeu as contas de quantas vezes abandonou o tratamento psiquiátrico para tratar de uma depressão severa e síndrome do pânico depois de ouvir a frase dos familiares mais próximos. Apesar de ter sido diagnosticado com as doenças ainda na adolescência, sem um período contínuo de tratamento ainda não foi possível superar as dificuldades que sua condição impõe para poder tocar a vida normalmente. “Me tornei um adulto muito instável, porque eu não tinha o apoio que precisava para fazer o tratamento correto na época em que fui diagnosticado. Então me vejo vivendo em ciclos: às vezes estou muito empolgado para trabalhar, socializar e ter uma vida normal. Mas em questão de dias, já desisto de tudo. Acho que o preconceito deixou marcas profundas na minha recuperação”.
Outras frases como “procure uma igreja, depressão é falta de Deus”, ou “ansiedade é besteira, pensa em outras coisas” ou ainda “se você trabalhar isso passa”, também eram frases que faziam parto do repertório de familiares. Os comentários escusos, piadas inconvenientes e desrespeito sobre o quadro de saúde psicológico, chamado de psicofobia, somado ao racismo, traz consequências graves à população negra.
Em 2018, o Ministério da Saúde publicou um estudo que mostra que a probabilidade de suicídio entre jovens negros de 10 a 29 anos é maior do que entre jovens brancos na mesma faixa etária. A estudante de Serviço Social. K.S**, 24 anos, também enfrenta algumas situações dentro de casa. Ela faz terapia e algumas consultas com a psicóloga são realizadas de maneira virtual, no próprio quarto.
“Minha mãe solta umas piadas. No dia da terapia eu digo que vou pro quarto para ela não bater na porta e nem me chamar. E ela responde em tom de piada dizendo que eu estou indo me tratar com médico de doido. O que claramente é um preconceito”, expõe a universitária.
A professora M.C**, de 33 anos, está em tratamento contra a depressão há sete anos. De lá para cá, já perdeu as contas de quantos posicionamentos negativos e outras situações relacionadas ao preconceito contra seu quadro de saúde teve que lidar. Os episódios de intolerância são cometidos por familiares, amigos e até colegas de trabalho.
“A parte que é pior pra mim é a do meu trabalho, no sentido que, como professora, obviamente, trabalho com a mente e, infelizmente, há uma interpretação equivocada sobre os problemas de saúde mental. Por exemplo: para melhorar, preciso viajar, interagir com o mundo, fazer esporte, ir à festas, preciso viver, como qualquer outra pessoa. E quando eles me veem nesses lugares, a interpretação deles é a seguinte: ‘como assim você está doente? Se você está doente deve ficar em casa, na cama’. E não é assim. Se eu me colocar nessa posição que eles acham que é a correta, o tratamento não vai evoluir”, desabafa a educadora.
Em rodas de conversas com os amigos, a docente também se depara com muita desinformação sobre os métodos aplicados durante os tratamentos psiquiátricos e psicológicos. Vale lembrar que enquanto a psicologia busca trabalhar os problemas trazidos por pacientes por meio de técnicas, como as de relaxamento e de expressão de emoções, a psiquiatria utiliza uma abordagem farmacológica.
“Quando você fala que vai ao psiquiatra e faz terapia até aceitam, mas aí quando sugiro que essa pessoa deve fazer terapia, por exemplo, geralmente respondem ‘eu não sou doida, eu não preciso, estou bem”. Então, de certa forma, esse tipo de fala me ofende, sabe? Eu me sinto mal com isso”, relata a M.C.
O termo psicofobia foi cunhado pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ApBP). A organização desenvolve, inclusive, uma campanha durante todo o ano, liderada pelo psiquiatra Antônio Geraldo Silva, para combater essa situação.
Em oito anos, a iniciativa se tornou um grande sucesso e já recebeu o apoio de diversas personalidades, como o ator Reynaldo Gianecchini, a atriz Bárbara Paz, o tenista Guga, o pugilista Popó, entre outros.
Atualmente, o estigma é um dos principais obstáculos ao tratamento adequado dos transtornos psiquiátricos. Muitas pessoas evitam procurar o psiquiatra, ou até mesmo custam a reconhecer os primeiros sinais de doenças como depressão e ansiedade, por causa do preconceito que ainda está relacionado à psiquiatria.
Popularizar a psicologia
A psicóloga Clarissa Gomes, especialista em psicologia clínica e saúde mental, traz algumas reflexões a partir da interseccionalidade de raça e classe para tornar a psicologia mais acessível e combater a psicofobia.
“A população negra, por exemplo, sofre muito mais os efeitos desse comportamento e desta exclusão. As pessoas negras tendem a não serem vistas, a não serem recepcionadas como pessoas, como indivíduos que necessitam também de tratamento, de atenção. Além disso, temos como agravante principal, o racismo, que causa dores emocionais profundas. A população negra sofre uma violência diária de silenciamento, de não serem vistas ou de serem vistas como pessoas perigosas”, explica a profissional.
Ao lembrar dos baixos investimentos quanto à presença de profissionais no SUS, a psicóloga Fernanda Ataíde, pós-graduada em psicologia social e antropologia, argumenta que é necessário também trilhar um recorte geracional para os casos de psicofobia. De acordo com Ataíde, o público mais jovem possui mais acesso à informação quanto à temática da saúde mental.
“De forma geral, se você pega uma geração mais contemporânea, é raridade você vê alguém discriminando o outro. Houve uma boa evolução. Talvez a questão da psicofobia possa ser mais presente nas duas gerações atrás. Primeiro que muitas vezes não se consegue pensar no investimento no psicólogo como uma forma qualitativa de gastos. Era comum também que as pessoas dessa geração não fossem ao psicólogo, mas terminavam com algum vício, como o alcoolismo. Além disso, o acesso ao tratamento psicológico ainda é, infelizmente, caro. E aí usa-se esse discurso para se confortar eventualmente. Como fazer terapia se não há muito acesso ou como se pagar pela sessão?”, indaga a profissional.
*A personagem preferiu usar um nome fictício
**As duas personagens desta matéria preferiram manter seus nomes apenas com as siglas iniciais para evitar a psicofobia no ambiente de trabalho e em casa, respectivamente.