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Misoprostol: o remédio que poderia salvar vidas, mas manda para a cadeia

Enquanto países vizinhos fornecem comprimidos para que mulheres abortem em casa, Brasil dificulta acesso a um medicamento simples

21 set 2022 - 19h46
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Foram mulheres brasileiras que “perceberam” que um dos efeitos colaterais desse medicamento poderia ser útil.
Foram mulheres brasileiras que “perceberam” que um dos efeitos colaterais desse medicamento poderia ser útil.
Foto: Reprodução/AzMina

Você talvez já tenha ouvido falar do Cytotec, que é um nome comercial. Ou, provavelmente, apenas escute por aí sobre o remédio para aborto ou pílulas abortivas. O nome clínico, porém, é misoprostol. Ele chegou no Brasil nos anos 80, era usado originalmente para tratar úlceras gástricas e vendido sem receita em farmácias até a década de 90. 

Foram mulheres brasileiras que “perceberam” que um dos efeitos colaterais desse medicamento poderia ser útil. É que, além de tratar os problemas no estômago, ele também provoca contrações do útero e a abertura do seu colo, podendo induzir o parto ou o aborto. E foi assim que ele acabou tendo seu uso transformado e hoje é considerado um dos principais e mais seguros métodos para interromper uma gestação no mundo (combinado com outra medicação, a mifepristone).

Desde 2005, o misoprostol consta na lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS) e na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais do Ministério da Saúde. Apesar disso, o Brasil faz uma verdadeira caçada à ele. As brasileiras, que o descobriram há mais de 30 anos, não têm hoje acesso seguro e amplo a medicação. 

No final da década de 80, diversos estudos começaram a comprovar não só que o remédio era usado como abortivo, mas também que ele reduzia as complicações da interrupção da gestação. Mas, em 1991, passou a ser necessário ter receita médica para comprá-lo por aqui. Sete anos depois, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o classificou como sujeito a controle especial. A partir daí, o uso dele ficou restritos aos hospitais e sua compra e venda foram criminalizadas, com pena que vai de 10 a 15 anos – superior à pena de estupro. 

O misoprostol é seguro e essencial para a saúde sexual e reprodutiva de mulheres, meninas e pessoas com útero, e é usado também para indução ao parto e controle de hemorragias. Mas o protocolo para ter acesso ao remédio ficou complexo até para profissionais de saúde. Nos hospitais brasileiros, é preciso fazer um cadastro na Anvisa, com RG e CPF do diretor técnico, do farmacêutico; dizer se utilizou para indução do parto, aborto, ou hemorragia, fazer o registro hospitalar indicando a paciente, o CRM do médico e número de comprimidos utilizados. 

“Objetiva e racionalmente, não há qualquer instituição ou indivíduo que se beneficie com esse controle rígido. É um medicamento que salva vidas”, avalia a cientista social Mariana Prandini, graduada em direito e PHD em Política. 

E VEIO MAIS RESTRIÇÃO 

A atual gestão federal tentou restringir o acesso ao misoprostol ainda mais. Em abril de 2021, a Anvisa realizou uma consulta pública sobre a portaria de 24 anos atrás e acabou sugerindo uma regulamentação com critérios rigorosos. Grupos de médicos, comunidade científica e entidades de saúde apresentaram provas e artigos para rechaçar a proposta.

“Criou-se uma aura de remédio perigoso, mesmo os estudos mostrando uma redução da mortalidade materna quando se vendia o Cytotec nas farmácias”, afirma o obstetra Cristião Rosas, especialista no tema. O remédio tem pouco risco de complicações, tem baixo custo, fácil conservação e é de simples administração, explica ele. “Mas há uma barreira muito grande para fazer a discussão sobre o medicamento dentro da esfera científica.”

ABORTO PODERIA SER FEITO EM CASA

O Brasil é o que tem uma das legislações mais restritivas do mundo em relação ao aborto, segundo o Journal of Public Health Policy (EUA), que analisou países da África, Ásia e América Latina. Em muitos lugares, incluindo nossos vizinhos latinos, o misoprostol é entregue para a mulher realizar um aborto legal e seguro em seu lar, principalmente nas situações precoces (até 9 semanas).

Na Colômbia, por exemplo, mesmo antes de o aborto legal ter sido ampliado, a maioria dos serviços especializados já ofereciam medicações como o misoprostol para serem utilizadas em casa, aos casos previstos em lei, com até 12 semanas de gestação (e agora foi estendido para 24 semanas). 

“É uma boa opção para muitas mulheres que querem evitar um procedimento cirúrgico ou não desejam estar em uma clínica ao lado de outras gestantes e bebês”, explicou Laura Gil, diretora de um Centro de Aborto legal em Bogotá, uma das médicas à frente da defesa da descriminalização no país.

A cientista Mariana Prandini diz sentir “um misto de dor e vergonha sempre que conta a história do misoprostol no Brasil”. Isso porque ela lembra que as mulheres brasileiras descobriram o uso do medicamento na ginecologia e obstetrícia antes de pesquisadores, médicos e farmacêuticos. “E hoje somos impedidas de acessar a inovação tecnológica que elas deram ao mundo.”

O acesso também não é garantido aqui nos casos previstos em lei (vítimas de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia fetal). Uma mulher brasileira que tem direito à interrupção legal precisa se deslocar, algumas vezes por milhares de quilômetros, até um hospital que ofereça o atendimento ou que tenha o misoprostol e possa internar a paciente para o uso. São menos de 100 serviços de referência em aborto legal, que nem sempre estão realmente ativos, em um país com mais de 5.000 municípios. 

A ginecologista Helena Paro defende o uso ambulatorial do misoprostol em todos os centros de saúde, além de poder adquiri-lo em farmácias com receituário de controle especial. “Isso não significa dizer que o aborto estaria legalizado, pois o governo ainda teria como investigar o médico que receitou”, esclarece. Helena foi responsável pela criação do serviço de aborto legal por telemedicina durante a pandemia, em agosto de 2020, em Uberlândia (Minas Gerais).  

TELEMEDICINA X COMÉRCIO CLANDESTINO

As barreiras para conseguir o misoprostol alimentam um mercado clandestino, fazendo com que mulheres comprem medicamentos não regulados, no tráfico ilegal – que podem ser falsificados. Isso sem falar nas que recorrem a métodos mais perigosos para abortar. Restringir o acesso e as informações sobre o medicamento não reduz o uso das mulheres: uma pesquisa de 2015 mostrou que uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, já realizou pelo menos um aborto, e metade utilizou o misoprostol, procurando o hospital depois.

Amália* adquiriu de maneira clandestina o medicamento para interromper a gravidez indesejada na nona semana de gestação. No entanto, ela não foi orientada seguramente sobre como usar e ficou com medo de que o aborto não tivesse concluído, o que a fez procurar a unidade de saúde. 

“Foi difícil conseguir o remédio, ele veio de outra cidade, tive que ir buscar em uma rodoviária, estava escondido dentro de um livro. Eu me senti uma criminosa”. Como mora no Brasil, de fato, é crime. Em países legalizados, ela receberia o misoprostol seguro das mãos de um médico.

No hospital, Amália passou por uma curetagem, cirurgia considerada obsoleta pela OMS há mais de 10 anos, mas ainda predominantemente usada no Brasil – colocando as vidas das mulheres em risco, como mostramos nesta reportagem.

Uma estudo recente foi feito no Reino Unido com 22 mil que trataram o aborto apenas com remédio (uso combinado de mifepristone e misoprostol), entregue na unidade de saúde, e 30 mil que foram tratadas por telemedicina, com a medicação recebida pelo correio. O resultado mostrou que 98% delas não precisaram voltar para o hospital (para fazer qualquer procedimento), o abortamento foi concluído com o remédio em casa sob orientação segura. Nenhuma delas precisou de internação, nenhuma morreu. 

MIFEPRISTONE NÃO CHEGA AQUI

Enquanto governos brasileiros fazem essa cruzada contra o misoprostol, o resto do mundo já está em métodos mais avançados, utilizando a combinação com mifepristone. Os dois juntos potencializam o efeito final e é mais fácil de usar, pois reduz o número de comprimidos, além de ser mais confortável, com menos efeitos colaterais. Menos de 5% das mulheres tratadas com os dois irão requerer uma intervenção cirúrgica para resolver um abortamento incompleto, apontam estudos. 

Mas, ao contrário do misoprostol, não há laboratório brasileiro produzindo a mifepristone, que não foi registrada na Anvisa. A reportagem d’AzMina questionou a agência sanitária se já houve pedido de farmacêuticas para trazer o medicamento para o Brasil e não teve retorno. Por meio da Lei de Acesso à Informação (pedido enviado em abril de 2022), solicitamos trocas de emails da Anvisa com a palavra mifepristone, mas recebemos a seguinte resposta: 

“O pedido requerido tem o condão de prejudicar as atividades primárias do órgão, acarretando dano à coletividade, uma vez que a Anvisa ainda sofre sequelas de sobrecarga laboral de demandas oriundas da Covid-19.”

A médica Helena Paro ouviu uma colega da Bolívia comentar em um fórum latino-americano que naquele país era usado a mifepristone, mesmo lá registrando apenas 552 abortos legais nos últimos 8 anos. Nesse mesmo período, o Brasil realizou mais de 10 mil interrupções previstas em lei, de acordo com o Ministério da Saúde. “Nada justifica os laboratórios estrangeiros não terem interesse em trazer o medicamento para cá com o número de abortos que temos”, disse Helena.

CENÁRIOS MACHISTAS 

Na esfera legislativa brasileira, avanços nesse sentido se mostram ainda mais distantes – a não ser que sejam eleitas parlamentares mais progressistas e alinhadas com os direitos das mulheres e evidências científicas mundiais. Este ano, dos 55 projetos de lei sobre aborto propostos no Congresso Nacional, 40 foram desfavoráveis e só 15 favoráveis, segundo levantamento do Elas no Congresso, plataforma de monitoramento de direitos das mulheres da Revista AzMina. 

No judiciário, Mariana Prandini fez uma análise de todas as decisões dos tribunais brasileiros em processos criminais envolvendo o misoprostol. Na maioria dos casos em que o medicamento é encontrado com um sujeito, a justiça brasileira aplicou o artigo 273 do Código Penal – um crime contra a saúde pública, instituído originalmente para responder ao problema de falsificação de medicamento (com pena de 10 a 15 anos de prisão).

E o debate dentro do Ministério da Saúde, até antes do governo Bolsonaro, sempre foi uma luta. “Tudo que é da coordenação de saúde das mulheres tem esse viés misógino. Principalmente quando se fala de aborto”, destacou a médica Esther Vilela, que coordenou a área de Saúde das Mulheres do Ministério entre 2011 e 2018 e percebeu que decisões políticas estão por trás de todo o trabalho técnico.

“É um estigma nojento, muitos anos nisso, e nos falta tanto. A minha esperança não é de esperar acontecer, é da luta, do advocacy, e trazer a verdade para as pessoas”, conclui o obstetra Cristião Rosas.  

Clique aqui e acesse o link da reportagem original.

AzMina
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