Movimentos negros avaliam transição de governo: "precisamos refundar Seppir e Fundação Palmares"
Figuras do movimento negro e quilombola, além de ex-líderes da Seppir e da Palmares, falam sobre a importância dos dois órgãos e elencam passos importantes para o futuro das instituições
Com a aproximação da posse do governo eleito em janeiro de 2023, as equipes de transição de Lula avançam em fazer a ponte entre o mandato federal atual e o novo que vai entrar. Entre a revisão das políticas públicas que seguiram nos últimos quatro anos de governo Bolsonaro, lideranças dos movimentos negro e quilombola, além de ex-líderes da Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e da Fundação Cultural Palmares, falam sobre os principais avanços necessários nos dois órgãos no novo mandato.
De acordo com Simone Nascimento, coordenadora nacional do Movimento Negro Unificado (MNU) e co-deputada estadual eleita (PSOL-SP), o funcionamento adequado da Seppir e da Palmares é fundamental para que a população negra avance em seus direitos de forma transversal.
"Acredito que o combate ao racismo precisa estar em todos os ministérios, secretarias e espaços do governo federal. Um bom exemplo é o papel fundamental que esses espaços podem ter no apoio e difusão da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da História da África e Afro-Brasileira nas escolas, através de uma educação guiada pelo antirracismo, ou seja, são espaços que precisam funcionar de forma articulada com todo governo", explica Simone.
A Fundação Cultural Palmares (FCP) é uma instituição criada em agosto de 1988 pelo governo federal como resultado da luta do movimento negro. O órgão tem a função de promover uma política cultural igualitária e inclusiva, que contribua para a valorização da história e das manifestações culturais e artísticas negras brasileiras como patrimônios nacionais.
"Esse foi o primeiro órgão oficial criado para preservar o patrimônio cultural afro brasileiro e fomentar a riqueza da nossa cultura. A Palmares tornou-se um símbolo para toda a comunidade negra brasileira, considerando que evoca, já no próprio nome, o representativo quilombo nascido na Serra da Barriga e que deixou um histórico de lutas e um legado de resistência", conta Vanderlei Lourenço, ex-presidente da FCP.
Segundo o que diz o site oficial da Fundação, o órgão tem por responsabilidade uma etapa fundamental para a certificação de quilombos, que é a emissão do certificado de autorreconhecimento, além de participação no licenciamento de obras de infraestrutura e fomento à cultura afro-brasileira. A instituição é vinculada atualmente ao Ministério do Turismo.
Já a Seppir, chamada atualmente de SNPIR (Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), foi criada em março de 2003 com o objetivo de incorporar a igualdade racial para superação do racismo nas políticas públicas governamentais, articulando ministérios e demais órgãos do país. Atualmente, a secretaria é vinculada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH).
"A Seppir é o principal órgão que o estado brasileiro constituiu numa perspectiva de dar responsabilidades ao estado e o desafio de resolver o maior de todos os grandes problemas nacionais, que é a questão racial", conta o advogado Eloi Ferreira Araújo, ex-ministro da Igualdade Racial e também ex-presidente da FCP.
Desmonte nos últimos quatro anos
A coordenadora nacional do MNU Simone Nascimento destaca que tanto a Seppir como a FCP, mesmo que existam hoje no Governo Bolsonaro, foram esvaziadas de seu sentido fundacional durante esse período, deixando de cumprir o seu papel institucional. "O governo Bolsonaro foi violento em todos os sentidos com a população negra. Nos atacou em todos os níveis de políticas públicas, inclusive através da Fundação Cultural Palmares, nomeando presidentes descomprometidos com sua missão", conta.
O ex-presidente da Palmares Sérgio Camargo esteve à frente da instituição de 27 de novembro de 2019 e a 31 de março de 2022. Conforme noticiado, em dois anos de gestão, ele não visitou um único quilombo no Brasil e não atendeu nenhuma liderança quilombola.
Imagem de Sérgio Camargo | Crédito: Reprodução/ Fundação Palmares
"Quando a frente da Fundação, Sérgio Camargo serviu como agente de desmonte, atacando a memória de Zumbi dos Palmares, o conceito da Consciência Negra, relativizando a escravidão contra negros no Brasil. Sérgio foi um revisionista, retirou nomes da lista de homenageados como Benedita da Silva, Marielle Franco e o próprio Zumbi dos Palmares", ressalta Simone.
Arilson Ventura, coordenador nacional da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), também destaca que nos últimos quatro anos houve retrocesso em relação à certificação de comunidades quilombolas e apoio aos territórios, que são atribuições da FCP.
"Não se avançou em relação à questão do licenciamento ambiental. Muito pelo contrário, a própria gestão da Fundação Cultural Palmares tentou inviabilizar que a proteção continuasse junto às comunidades contra a passagem de grandes empreendimentos por dentro dos territórios", relata Arilson.
Já a SNPIR, sofre com baixos recursos que comprometem a sua efetividade. Em 2021, o recurso autorizado para o tema foi de R$ 3 milhões, no âmbito do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, um valor considerado baixo diante das diversas ações a serem realizadas nacionalmente. O valor autorizado nem chegou a ser totalmente gasto. Foram executados apenas R$ 2 milhões, 66% do total, sendo metade gasto em contas a pagar de anos anteriores.
Próximos passos
Diante desse contexto, para Simone Nascimento é preciso refundar a Seppir e a Fundação Cultural Palmares. "O primeiro passo do governo eleito deve ser construir um Ministério da Igualdade Racial com capacidade de cumprir com sua função nos próximos quatro anos, ou seja, com orçamento, e negras e negros comprometidos com a luta antirracista e a igualdade racial no Brasil", explica.
"Precisaremos reerguer os sentidos da participação negra em um governo federal, garantir proteção, preservação e articulação das e dos quilombolas, valorizar e fomentar a cultura, memória história negra, para ajudar o Brasil a construir políticas públicas que visem a reparação histórica, dando o devido e fundamental reconhecimento das lutas históricas do Movimento Negro brasileiro", também complementa a coordenadora nacional do MNU.
Simone Nascimento | Imagem: Divulgação/Victoria Alves
Para Eloi Ferreira Araújo, dentro da Fundação Cultural Palmares, o primeiro passo deverá ser a luta para poder ampliar o seu papel na titulação das comunidades quilombolas, para além da certificação. "A Fundação Cultural Palmares deve rever um pouco o seu papel e atuar mais decisivamente para que a titulação das comunidades seja alcançada o mais breve possível, porque essa última etapa é muito demorada", pontua o ex-ministro da Igualdade Racial.
Além disso, segundo ele, a Fundação deve cumprir uma jornada de ações para recuperar o tempo perdido. "Além de apoiar as iniciativas culturais da comunidade negra, deve se jogar intensamente na perspectiva de avançar no sonho de construir um grande equipamento de memória nacional, da história e da memória do povo negro", ressalta.
Em relação à Seppir, Eloi destaca que os próximos quatro anos estão também carregados de mais responsabilidade para o órgão. Segundo ele, nesse período, a Seppir veio a deixar de existir como órgão do Estado para construir as políticas e a responsabilidade de combate ao racismo.
"O desafio agora é regulamentar o Estatuto da Igualdade Racial. Ele tem o condão de reduzir as graves desigualdades que tem natureza racial no nosso país, porque trouxe ao mundo jurídico as ações afirmativas. O Estatuto precisa ser regulamentada em toda a sua dimensão, como em seu instituto de autodeclaração, que precisa ser regulamentado com um decreto que elenque as condições que serão observadas para acompanhar essa formulação que é importante".
Eloi Ferreira Araújo | Imagem: Reprodução/ Fundação Palmares
Arilson Ventura elenca também que, no próximo governo, a Fundação Cultural Palmares deve fazer a proteção das comunidades quilombolas no ponto de vista do licenciamento ambiental. "Que as comunidades sejam protegidas desses grandes empreendimentos que podem trazer grandes consequências para nossas comunidades e que ela possa fazer a proteção jurídica das comunidades quilombolas de todos esses procedimentos que podem ser danosos. Também no ponto de vista de cobrar que as comunidades sejam consultadas em todo o procedimento que houver, conforme estabelece a Convenção 169 da OIT".
Além disso, Arilson pontua a necessidade de atenção ao Programa Brasil Quilombola, desenvolvido pela SNPIR. O programa compreende um conjunto de ações voltadas para a melhoria das condições de vida e ampliação do acesso a bens e serviços públicos das pessoas que vivem em quilombos. Essas ações são desenvolvidas de forma integrada pelos diversos órgãos do Governo Federal responsáveis pela execução dessas ações.
"São ações estruturantes e de desenvolvimento para as comunidades. Isso foi paralisado pelo meio do caminho. Se a gente conseguir fazer com que o programa Brasil Quilombola ou alguma coisa semelhante possa funcionar, acredito que as comunidades estarão muito bem servidas", explica o coordenador nacional da Conaq.
Arilson Ventura | Imagem: Reinaldo Carvalho/ Assembleia Legislativa do Espírito Santo
Vanderlei Lourenço finaliza que, para a FCP, é importante reforçar o seu quadro de recursos humanos e a sua estrutura, sobretudo a orçamentária.
"Ao longo dos anos, o Fundo Nacional de Cultura tem tido papel importante no sentido de reforçar o minguado orçamento da Fundação. Espera-se que , sob o guarda-chuva da cultura, novamente elevada à condição de ministério, a Palmares possa ser objeto de atenção, recupere os seus símbolos e o seu histórico protagonismo nas ações voltadas à cultura negra em nosso país".
Vanderlei Lourenço | Imagem: Reprodução/ Fundação Palmares
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