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"Mulheres alcoolistas são vistas como vagabundas”, diz fundadora de coletivo

Alcoólatras têm mais dificuldade em acessar tratamento do que homens

20 jun 2022 - 05h00
(atualizado em 21/6/2022 às 14h13)
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Graziella Santoro enfrentou preconceitos e falta de assistência adequada durante o tratamento, por isso decidiu fundar coletivo
Graziella Santoro enfrentou preconceitos e falta de assistência adequada durante o tratamento, por isso decidiu fundar coletivo
Foto: Arquivo pessoal

Quando decidiu procurar tratamento para o alcoolismo, a publicitária Graziella Santoro, de 53 anos, só não desistiu na primeira reunião do Alcoólicos Anônimos porque essa era a condição imposta pela mãe dela para que continuassem morando juntas. O encontro só tinha homens, todos mais velhos, e foi o baque inicial para quem relutou por muito tempo em se enxergar como alcoolista. No dia seguinte, duas mulheres presentes fizeram amenizar o primeiro impacto, e a partir daí, o acolhimento feminino - de pessoas que viveram o mesmo que ela - foi o que permitiu Graziella continuar.

Mais de 10 anos se passaram desde esse dia e, de lá para cá, ela precisou lutar em duas batalhas: uma contra o álcool e outra contra o preconceito. A mulher dependente química é julgada pelos relacionamentos que mantém, pela forma como lida com os filhos, pelo jeito como se veste, como se porta e por muitos outros aspectos que entre os homens dependentes químicos têm bem menos relevância para a sociedade.

“Uma dificuldade era me sentir totalmente à vontade em grupos predominantemente compostos por homens e, em sua maioria, machistas. Me incomodava o fato de haver mais homens do que mulheres nos grupos de ajuda, mais ou menos dez homens por mulher. A maioria das mulheres não ficavam, elas não se sentiam à vontade para falar dos abusos que sofreram. As mulheres alcoolistas são vistas como vagabundas”, diz.

Incomodava também à publicitária que, do lado de fora do AA, as mulheres estavam nos bares, bebendo, mas não chegavam aos grupos de ajuda. O fato é que além da dependência química, elas precisam antes enfrentar a culpa: “Tão grande que elas não conseguem pedir ajuda. E bebem para esquecer”, afirma. 

Quando fala sobre culpa, Graziella se refere principalmente a episódios que envolveram suas filhas. Ela se casou e se divorciou duas vezes, e teve duas meninas, uma de cada relacionamento. Separada, mãe solo e alcoolista, chegou a deixá-las sozinhas, com 7 e 3 anos de idade. Saiu para beber e voltou alcoolizada.Em uma das vezes que bebeu demais, estava com um namorado, que também bebeu muito e ainda cheirou cocaína. Na volta, brigaram, ele a agrediu dentro do carro enquanto dirigia e ela abriu a porta para fugir. Se jogou, mas desmaiou e ficou ali no chão.

Foi o irmão dela quem a encontrou e a levou para casa, onde as filhas a viram com o rosto sangrando. E nesse dia recebeu o ultimato da mãe. “Foi o que me salvou”, ela lembra.

Uma característica muito presente na realidade das mulheres dependentes químicas é a intensidade com que os filhos vivenciam o problema. Mesmo em situação de vulnerabilidade, são elas que estão com a guarda das crianças na maioria das vezes, e a ausência dos pais torna o trauma dos filhos ainda maior.

“Eu era mãe solo, os pais das minhas filhas quase nunca as pegavam. Em casais heterossexuais, o homem tende a abandonar a mulher alcoolista com os filhos. Ela não é ajudada e ainda é recriminada, sofrendo mais. Estamos longe de termos um equilíbrio entre as responsabilidades parentais, por isso, sendo mulher alcoolista e, mais ainda, separada, os filhos sofrem demais”, reforça.

Passos até o tratamento

Violência, preconceito, vergonha e baixa autoestima foram aspectos que permearam a vida da publicitária durante a fase aguda do alcoolismo, assim como o é com a maioria das mulheres dependentes químicas. Elas se envolvem muitas vezes em relacionamentos abusivos, ficam vulneráveis e vivenciam agressões e manipulações. O preconceito, também presente na família, faz a mulher adiar o pedido de ajuda. E as questões biológicas do organismo feminino fazem o tratamento ser mais difícil para esse público, algo que ela demorou a enxergar.

Quando procuram ajuda, as mulheres nem sempre encontram assistência para a maternagem, os traumas da violência e dos abusos e outros aspectos específicos do universo feminino. “Os projetos terapêuticos da maioria dos lugares foram pensados para homens, sem ter um olhar para as especificidades do público feminino. Mulheres em geral têm filhos. Onde os filhos irão ficar e com quem durante um processo de tratamento? Os homens são levados por outras mulheres (mães e esposas). Já as mulheres estão muitas vezes sozinhas nesse processo”, ressalta a psiquiatra Alessandra Diehl, pesquisadora sobre mulheres, diversidade sexual, gênero e violências.

Psiquiatra Alessandra Diehl aponta falhas na rede de assistência à mulher dependente química
Psiquiatra Alessandra Diehl aponta falhas na rede de assistência à mulher dependente química
Foto: Arquivo pessoal

Foram esses entraves que fizeram Graziella Santoro pensar em ajudar mulheres que enfrentavam as mesmas questões que ela enfrentou. Depois de oito anos frequentando o AA, e com a consciência de que sofria de uma doença mental crônica e incurável, e que nunca mais poderia beber de novo, ela decidiu dar a mão a outras pessoas que queriam se tratar.

Em fevereiro de 2020 fez uma postagem na internet contando um pouco de sua história e choveram pedidos de ajuda. Um mês depois, a pandemia de coronavírus fez todos entrarem em isolamento, os grupos presenciais de ajuda fecharam e foi então que a ideia da publicitária deu frutos na Internet e, atualmente, ela preside a Associação Alcoolismo Feminino.

As primeiras conversas entre as mulheres começaram em grupos de WhatsApp. Hoje, existem quatro grupos regionais no Brasil, que funcionam das 9h às 23h, para dar suporte e monitoramento quase que o tempo todo às participantes, com mais de 60 voluntárias alcoolistas em recuperação.

“Nossa associação trabalha em todo o Brasil e já alcançamos brasileiras na Europa, de forma totalmente virtual, com um encontro presencial em algumas cidades. Fazemos o acolhimento das mulheres em sofrimento pela maneira como estão consumindo álcool, sem preconceitos, nem julgamentos. Em nossa associação, nós acompanhamos a jornada das nossas mulheres, as apoiamos nas recaídas como parte do processo e acreditamos e escolhemos uma vida feliz sem o álcool”, detalha.

Além das reuniões online, existem grupos terapêuticos para tratar a prevenção de recaídas, a codependência emocional, e especificidades da mulher, como a maternagem e os transtornos alimentares associados ao alcoolismo. Elas contam também com atendimento psicológico, biblioteca, clube de leitura, grupos para familiares e outras ferramentas importantes para o tratamento.

A proposta, infelizmente, está longe da realidade da maioria dos locais que recebem mulheres dependentes químicas. O atendimento muitas vezes é feito por homens, sem o olhar multidisciplinar, sem conhecimento especializado, sem apoio jurídico para os casos de violência, sem projetos de reinserção no mercado de trabalho. “Parar de beber e se manter em situações como fome, desemprego e violências tende a levar as mulheres a recaídas. No Brasil, entre outras coisas, falta respeito pela nossa condição de portadoras de um transtorno mental e falta conhecimento e divulgação sobre esse grave problema de saúde pública”, aponta Graziella.

Bebida, tabaco e a falsa ideia do empoderamento

No Brasil, o consumo abusivo de álcool entre as mulheres cresceu de 9% para 13% em 10 anos, de acordo com dados da pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) de 2021, do Ministério da Saúde.

Além disso, enquanto o tabagismo diminui entre os homens, ele tem se mantido estável entre as mulheres, segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca). E para as jovens de 18 a 24 anos, a iniciação ao uso diário de produtos de tabaco que emitem fumaça é maior que entre os homens.

Os motivos para que elas iniciem e mantenham o consumo de cigarro são as condições econômicas, o estresse provocado pela dupla jornada de trabalho e pela desigualdade de oportunidades de trabalho e salariais, pela violência doméstica ou mesmo por questões estéticas impostas pelos padrões de beleza vigentes na sociedade atual, como aponta o estudo "Nicotina: droga universal", do médico José Rosemberg, citado pelo Inca.

A psiquiatra Alessandra Diehl alerta ainda que o fenômeno de aumento de consumo de  substâncias entorpecentes entre as mulheres tem sido observado tanto para as drogas lícitas como ilícitas, além de que elas têm mais acesso a medicamentos ansiolíticos e analgésicos. “As mulheres têm mais comorbidades psicológicas que os homens e, em geral, frequentam mais os postos de saúde, e isso aumenta as chances de elas receberem prescrições destes medicamentos, e infelizmente, uma parcela delas vai seguir usando de forma crônica e ou de forma abusiva”, explica

Mas há uma grande preocupação que circula entre especialistas da área de saúde que é a glamourização do consumo de álcool e outras drogas. A falsa ideia de empoderamento feminino baseada no consumo de bebida e álcool na mesma quantidade e frequência que é feito pelos homens é um apelo atual da indústria para captar um público que representa quase metade da população: as mulheres.

A tática não é nova, mas continua em evidência porque tem dado certo. As mulheres historicamente fazem menos uso de álcool e tabaco, portanto há um mercado a ser explorado, como destaca a assessora de Relações Internacionais da Aliança de Controle do Tabagismo Promoção da Saúde, Laura Cury.

Laura Cury estuda a relação da publicidade com o aumento do consumo de álcool e tabaco no público feminino
Laura Cury estuda a relação da publicidade com o aumento do consumo de álcool e tabaco no público feminino
Foto: Arquivo pessoal

“Que estratégias a publicidade tem usado? Primeiro, a questão da igualdade de gênero. ‘Se o homem fuma, se o homem bebe, porque a mulher não o faz? Temos que ser iguais’. Só que do ponto de vista da saúde pública, nós mulheres não queremos ser iguais aos homens, não queremos mais consumo de produtos nocivos, mais doenças, mais perda de produtividade no trabalho, mais sofrimento, mais morte”, ressalta.

A mensagem que as indústrias querem passar é de que elas lutam por uma causa, geralmente progressista, o que atrai mulheres, especialmente as jovens. Outra preocupação dos especialistas são as brechas abertas na internet para a publicidade, que permitem atingir todos os tipos de públicos, inclusive o infanto-juvenil.

Por meio de influenciadores, com mensagens subliminares e postagens com prazo determinado de visualização, a propaganda chega de forma discreta, atinge diretamente o público pretendido e passa despercebida pelas autoridades.

“Com a internet fica absolutamente generalizado e é difícil fiscalizar. É um ambiente muito dinâmico - está disponível no storie hoje, amanhã já não está mais -, mas é um espaço que precisa ser visto pelas autoridades. Às vezes nem é de maneira direta, alguém posta uma foto aparentemente despretensiosa, com um cigarro na mão, uma bebida em cima da mesa, fazendo um brinde, às vezes com uma hashtag que vai levar à plataforma de uma bebida. Ou seja, esse marketing não é óbvio, não é escancarado, e é o que se chama no meio de comunicação de marketing sorrateiro”, alerta Laura.

O que ela defende, além da conscientização da população, é o monitoramento da propaganda e a criação de políticas públicas e legislação que restrinjam a propaganda de álcool e tabaco. Esse tipo de medida é, inclusive, recomendada pela Organização Mundial da Saúde, que confirma a eficácia na redução da prevalência de hábitos que fazem mal à saúde.

Fonte: Redação Nós
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