Mulheres bissexuais relatam 12 vezes mais episódios de violência que homens cis
Estudo levanta debate sobre como preconceito e misoginia afetam população bi; para especialistas, falta de informações é problema-chave
Segundo um levantamento quantitativo pioneiro na América Latina, as mulheres bissexuais relataram 12 vezes mais episódios de violência sexual em relação às respostas de homens hétero cisgênero. O estudo, realizado em 2022 pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pela Universidade de São Paulo (USP) e publicado na revista científica "Nature Scientific Reports", mapeou a comunidade LGBTQIA+ no Brasil e, considerando os dados populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), concluiu que o percentual de brasileiros adultos que se declaram assexuais, lésbicas, gays, bissexuais e transgênero é de 12% – o equivalente a cerca de 19 milhões de pessoas.
Foram entrevistadas ao todo 5.858 pessoas, entre as quais 2707 eram mulheres cisgênero e 20 mulheres transgênero. Embora não forneça mais detalhes sobre as entrevistas, trata-se de um número revelador sobre vários aspectos relacionados à violência de gênero no Brasil.
Maria Cristina Pereira Lima é diretora do Campus Botucatu da Faculdade de Medicina da Unesp. Ela conta que uma revisão recente do estudo, publicada em 2023, aponta que os principais fatores para maior violência no grupo de bissexuais é o preconceito (LGBTfobia) e a misoginia. "Existe um mito de que uma mulher lésbica ou bissexual mudaria sua forma de se relacionar se fizesse sexo com um homem 'de verdade' ou 'bom de cama'. Por trás deste mito há um grande preconceito marcadamente misógino", comenta.
Ainda conforme Maria Cristina, outro motivo por trás do fato de as mulheres bissexuais serem apontadas como alvos mais específicos de violência sexual é a percepção de que mulheres que se relacionam apenas com mulheres, em tese, não estariam submetidas aos efeitos do patriarcado. Na pesquisa, mulheres lésbicas relataram seis vezes mais episódios de violência sexual do que os homens hétero cisgênero.
"Digo 'em tese' porque todas as relações humanas são relações passíveis de se submeterem a diferentes dinâmicas de poder que podem se tornar violentas. No caso das mulheres heterossexuais, o patriarcado e o machismo estrutural funcionam como reforçadores desta dinâmica", fala a pesquisadora.
A vulnerabilidade das mulheres bissexuais em nível mundial já foi um tópico de atenção da campanha Livres & Iguais da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2013. Segundo dados da época, quase 1 a cada 2 mulheres bissexuais nos Estados Unidos havia relatado já haver sofrido estupro e 75% reportaram já haver enfrentado outras formas de violência sexual.
"O nível de preconceito em relação às pessoas bissexuais parte de uma exigência social de que nós temos de classificar e encaixar o outro dentro de uma perspectiva de uma forma estanque. Você só pode ser isso, você só pode ser aquilo. As pessoas bissexuais sofrem mais preconceito por conseguir transitar entre as normas e quebrá-las. Nós precisamos de muitas mais pesquisas sobre a bissexualidade para que a gente possa compreender melhor toda essa trama relacional", aponta Pâmela Reis, doutoranda no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Medo constante x visão binária da sociedade
A jornalista Vitória Régia da Silva, 28 anos, integra a Frente Bissexual Brasileira e é uma das fundadoras do Bisibilidade, coletivo de mulheres bissexuais do Rio de Janeiro (RJ). Ela diz que o medo da violência é uma constante no caso de pessoas bissexuais, especialmente mulheres bi.
"Temos ainda poucos dados públicos e nacionais que trazem uma dimensão desse cenário, porque é uma violência ainda muito invisibilizada. Somos submetidas a diferentes formas de violência. É inaceitável a existência do estupro corretivo, que vitima predominantemente mulheres negras, e que acontece sob o pretexto de correção da sexualidade por meio da prática de violência sexual contra quem não está dentro da cis e/ou heterossexualidade", observa.
Para Eduada Hipller, a Doarda, influencer bissexual de 20 anos que soma quase 8 milhões de seguidores entre Instagram e TikTok, a bissexualidade ainda é invalidada até mesmo por pessoas da própria comunidade LGBTQIA+. "É um mito, por exemplo, achar que as mulheres bissexuais são bem aceitas socialmente. O que acontece é que mulheres bi acabam se tornando um fetiche para muitos homens héteros. E isso não nos livra de sofrer os impactos dos ideais conservadores construídos sobre o 'papel da mulher' na sociedade. Quando me assumi, sofri ataques na Internet. Felizmente, nada disso me abalou, mas confesso que até hoje evito falar muito sobre pra preservar minha saúde mental. O que é horrível né?", diz.
A influencer recifense Sofia Santino, 22 anos, foi parar nos trending topics do Twitter em 2022 quando se assumiu bi para os seus mais de 10 milhões de seguidores. Ela acredita que uma data como hoje, Dia da Visibilidade Bissexual, ajuda a desconstruir mitos que contribuem para as mais diversas formas de violência contra a comunidade.
"Achei que era importante para a comunidade dar o passo de me assumir publicamente. Parece que sempre temos que estar provando que somos bissexuais, que a gente pode namorar um homem e continuar sendo bissexual, ou namorar uma mulher e continuar sendo bissexual... Acho importante essa pauta estar sempre em alta para a gente deixar isso claro, para ver se conseguimos mudar essas outras visões equivocadas das pessoas", fala.
A informação, de acordo com Giancarlo Spizzirri, psiquiatra da Faculdade de Medicina da USP, é o modo mais producente de lidar com um preconceito que é fruto de uma sociedade pautada no binarismo. "De fato, a necessidade de ficar se provando o tempo todo é um ponto sensível para essas pessoas. Não é de se estranhar que estudos apontem índices elevados de ansiedade e depressão entre bissexuais, configurando o chamado estresse de minoria. Trata-se de uma questão que exige políticas públicas, principalmente voltadas ao conhecimento e à desmistificação. No cerne de tudo isso está a educação", ressalta.
"Ter o dia da visibilidade retira o aspecto da invisibilidade, tira o assunto de debaixo do tapete. É como se a sociedade dissesse em alto e bom som: pessoas não podem ser discriminadas e até mortas por uma forma de expressão de sua sexualidade. É como se a sociedade dissesse que toda vida importa", completa Maria Cristina.