Mulheres com deficiência e o direito à vaidade, ao sexo e ao prazer
Pessoas com deficiência enfrentam duplo preconceito; assunto ainda é tratado como tabu por grande parte da sociedade
“Se isso é sobre vivência, me resumir à sobrevivência é roubar o pouco de bom que eu vivi". O trecho da música do rapper paulistano Emicida, em feat com Pabllo Vittar e Majur, está marcado na pele de Vanessa de Oliveira, 33, e não é por acaso. “AmarElo” traduz o empoderamento e protagonismo que a influencer alagoana vem construindo desde que se percebeu como uma pessoa com deficiência, aos 12 anos. Foi nessa época que ela ganhou sua primeira cadeira de rodas, ou melhor, seu trono, como costuma definir. De lá para cá, em uma sociedade marcada pelo capacitismo, nem tudo são flores.
Comportamentos com tom penoso, diálogos que infantilizam a sua existência e excesso de cortesia são comuns. Mas não só isso: os olhares incomodados e as sobrancelhas hasteadas ao vê-la como pessoa com deficiência, LGBTQIA+ e casada com outra mulher também integram sua rotina.
“Parece que não passa na cabeça de muita gente que existe a possibilidade de nos relacionarmos. Quando tem a questão LGBTQIA+ junta, existe um tabu maior. Há um apagamento, inclusive, dentro da própria comunidade. É uma luta diária para mostrar que nós estamos e precisamos ocupar todos os espaços”, ressalta.
Além da tentativa de apagamento sobre suas vidas, pessoas com deficiência ainda precisam lidar com a falta de visibilidade sobre seus desejos e vontades. Falar de sexo para esse grupo parece não permear o imaginário social. Apesar dos avanços nas discussões nos últimos anos, o assunto ainda é considerado um tabu para mulheres sem deficiência, imagina para as com? Amar o próprio corpo, sentir ou dar prazer para o parceiro ou parceira podem ser impensáveis para uma sociedade capacitista, mas não para as pessoas com deficiência.
Oliveira acredita que essa construção vem do olhar de infantilização com que a maioria das pessoas enxerga o grupo. É comum, inclusive, que pessoas com deficiência sejam taxadas de “anjinhas” e inocentes, o que faz com que a característica humana de se relacionar afetiva e sexualmente seja esquecida, como ressalta a criadora de conteúdo digital.
“Com isso, vem essa visão de que nós não fazemos sexo e não nos relacionamos. Quando se fala de sexo tem sempre aquela visão de um padrão e fim. Só que existem mil possibilidades para serem exploradas e sentir prazer. Saiam dessa caixinha imaginária, explorem outras partes do corpo. Não existe o jeito certo e o errado de fazer sexo, se no final as duas pessoas sentirem prazer é o que importa”, defende a jovem.
Casada desde 2019 com a designer Tháfiny Braz, ela conta que é comum que as pessoas vejam sua esposa como cuidadora, amiga e até mãe. “Como pessoa com deficiência, as reações são sempre as mesmas de olhares e falas capacitistas. Mas, por ser uma mulher lésbica, só passei por uma situação de preconceito uma vez que demonstrei carinho com minha esposa em um espaço público. Geralmente, as pessoas não nos veem como casal. Enfim, são visões capacitistas”, lamenta Vanessa.
Com mais de 90 mil seguidores no instagram, a influencer, comunicadora, ativista LGBTQIA+ e teóloga, Leandrinha Du Art, conta um pouco de suas experiências e vivências como mulher trans e pessoa com deficiência na rede social, inspirando mulheres a se amarem e explorarem seus desejos e vontades.
A estudante de Gestão de Recursos Humanos, Dayana Alves, 27, também já ouviu muitos comentários que associavam pessoas com deficiência à ausência de vaidade e desejo sexual. Em fotos publicadas em sua rede social, ela vive sempre rodeada de amigos, em festas na casa de sua família e feliz, como todos os jovens da sua idade.
Alves nasceu com distrofia muscular congênita merosina negativa e apresentou fraqueza muscular ainda no nascimento. Desde criança, recebeu apoio irrestrito de seus parentes e de amigos e acredita que isso a ajudou a crescer com uma boa autoestima.
“Eu sempre me arrumei para mim. Acho que as mulheres não precisam se arrumar para os homens. Eu me olho no espelho e me sinto linda. Passo uma maquiagem, faço as unhas, cabelos sempre arrumados e bem vestida. Meu corpo é fora do que consideram como padrão, então desde a adolescência o aceito como ele é, mas foi uma construção. As pessoas precisam entender que nós temos desejos, vaidade e tudo mais”, ressalta a universitária que é dona do perfil Day Cadeira Cúmplice, onde fala sobre pessoas com deficiência, beleza e autoestima.
A educadora e terapeuta sexual Laylla Brandão expõe que o olhar sobre o sexo e a sexualidade ainda está direcionado aos estereótipos corporais em relação ao corpo perfeito e aos órgãos sexuais, como a vulva e o pênis, além de seios e nádegas. A sexualidade da maioria das pessoas com deficiência física, segundo a profissional, tem sua estrutura funcional e não é afetada.
“Diferentemente do que as pessoas pensam, o funcionamento da resposta sexual - desejo, excitação e orgasmos - se mantém. Esquecemos totalmente que qualquer parte do corpo é erógena, algumas mais que outras. O que não vemos é que situações de prazer com pessoas em situações diferenciadas pedem o jogo erótico mais apurado. É preciso chamar a criatividade para a sexualidade”, argumenta a profissional.
Brandão ressalta que precisa haver uma reformulação do olhar e na mente sobre as questões relacionadas ao prazer e vaidade de pessoas com deficiência. “Não é porque temos uma necessidade diferenciada que o prazer se desfaz. Apenas precisa de um novo olhar erótico no jogo do prazer. É necessário ir além dos limites sociais. Não dá para achar que não se pode viver o prazer. Ele é ilimitado e está totalmente em nossas mãos usufruir dessas inovações. Nosso prazer começa na mente”, explica a terapeuta sexual.