Mulheres lésbicas atrasam em até três anos ida ao ginecologista
No Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, veja como a falta de dados, a subnotificação e o preconceito impactam negativamente essa população
Agosto marca o Mês da Visibilidade Lésbica, um momento não só de celebrar as pessoas com essa orientação sexual, mas de fortalecer a luta por igualdade, direitos e inclusão. Um dos pontos mais sensíveis dessa batalha é a saúde sexual da mulher lésbica, a começar pela precariedade de dados relacionados a essa população.
"Há pouquíssimos estudos na literatura médica e os disponíveis contam com amostragens pequenas. Mas, de modo geral, o que se sabe é que as mulheres lésbicas vão menos ao médico e atrasam em torno de três anos a consulta com o ginecologista", informa a ginecologista e sexologista Lucia Alves da Silva Lara, mestre e doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Comissão Nacional de Sexologia da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
De acordo com dados da pesquisa "Expectativa da mulher brasileira sobre sua vida sexual e reprodutiva: as relações dos ginecologistas e obstetras com suas pacientes" (2019), realizada pela Febrasgo, 76% das mulheres (independente de sua orientação sexual) realizam consultas ginecológicas anualmente. Ao considerar somente as mulheres que fazem sexo com mulheres (MSM), o percentual cai para 47%, de acordo com o relatório Atenção Integral à Saúde das Mulheres Lésbicas e Bissexuais, do Ministério da Saúde (MS).
Esses são os dados estatísticos mais contundentes a respeito da saúde da mulher lésbica. É fundamental, porém, levar em conta o aspecto da subnotificação, uma vez que a autodeclaração é fundamental na compilação de informações e há todo um contigente de mulheres que não fala abertamente sobre sua orientação sexual - principalmente e infelizmente, entre as paredes de um consultório médico. "E quando colocamos as mulheres lésbicas como pacientes, precisamos pensar também nas barreiras de acesso como raça e classe social. De quais pacientes estamos falando? Com certeza a procura por um ginecologista é maior entre mulheres lésbicas brancas e ricas do que entre mulheres lésbicas pretas e periféricas", comenta o ginecologista e obstetra Vitor Henrique Oliveira, o Maga, muito atuante na saúde de adolescentes e do público LGBTQIA+ e host do podcast "Fala, mas faz".
Consulta heteronormativa
É comum, numa sociedade que ainda se pauta pela binariedade, que padrões heteronormativos influenciem no atendimento médico. A partir do momento em que uma mulher entra no consultório, há a pré-concepção de que ela tem uma relação heterossexual. Não se pensa que ela pode ser lésbica ou bissexual. Os questionamentos, então, envolvem desde o método contraceptivo que ela utiliza até perguntas sobre possíveis dores durante o sexo e uso de camisinha. "São falas que constrangem as mulheres lésbicas e podem levá-las a tomar uma atitude defensiva, ocultando sua orientação sexual", afirma Lúcia.
"Já ouvi mais de um relato de paciente que foi considerada 'virgem' por outro profissional, antes de recorrer a mim, por ter compartilhado a orientação sexual com o médico e explicado que nunca fez sexo com penetração com os homens", conta a ginecologista e obstetra Karen Rocha De Pauw, especialista em Reprodução Humana pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP).
Ainda conforme a terapeuta sexual e sexóloga clínica Dani Fontinele, apresentadora do podcast "Clitcast" e membro da Associação Brasileira dos Profissionais de Saúde, Educação e Terapia Sexual (Abrasex), não é raro ver profissionais desprezando ou minizando a sexualidade de mulheres lésbicas, como se só os relacionamentos com homens pudessem indicar uma vida sexual ativa.
Para Vitor Maga, o principal motivo de as mulheres lésbicas evitarem consultas ginecológicas é o receio de sofrerem preconceito aliado ao medo de não serem compreendias durante a consulta. "Muitas vezes, por conta da falta de treinamento e até por intolerância, alguns ginecologistas não sabem fazer o acolhimento à diversidade sexual. Ainda há uma visão muito antiquada de que saúde sexual feminina se resume justamente àquelas pacientes que têm risco de câncer de colo, por exemplo, pela relação sexual pênis-vagina. E isso é um grande equívoco", avisa. Além disso, existe o mito de que as lésbicas não têm risco de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST's) por não se relacionarem com homens, o que é um erro.
Dani também chama a atenção para o fato de que, ao contrário do que acontece com adolescentes hetero, as meninas lésbicas não vêem "motivo" para começarem a cuidar cedo da saúde íntima. "A principal motivação das garotas heterossexuais mais jovens é o início da vida sexual e a consequente necessidade de uma prescrição de pílula anticoncepcional, o que não ocorre com as lésbicas. Daí as consultas e os exames preventivos de praxe acabam sendo feitos de modo tardio", observa.
Riscos e necessidades
Um dos poucos documentos relativos ao tema no Brasil, o dossiê "Saúde das Mulheres Lésbicas - Promoção da Equidade e da Integralidade" (2006) foi conduzido pela antropóloga Regina Facchini e produzido pela Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Embora já se tenham passado quase vinte anos do estudo, as informações de alerta sobre os riscos da negligência com a saúde das mulheres lésbicas seguem atuais.
A pesquisa alerta sobre a necessidade de prevenção e detecção do câncer de colo útero, sobretudo através do Papanicolau - e a evidência de maior prevalência de fatores de risco para câncer de mama entre mulheres lésbicas, como o tabagismo, a baixa frequência de exames preventivos e a nuliparidade (condição de quem nunca engravidou).
O dossiê já listava os motivos para menor procura de serviços de saúde pela população lésbica, destacando a existência de discriminação e o despreparo dos profissionais para lidar com as especificidades desse grupo populacional.
Esse despreparo, de acordo com os profissionais ouvidos por Terra NÓS, só pode ser revertido com um trabalho de base. "Uma das formas de melhorar as políticas públicas de saúde, de modo geral, é a educação médica adequada. Criar um programa estruturado de ensino de saúde sexual nos cursos da área de saúde faz com que o estudante tenha um olhar diferenciado para essas questões. Quando a gente está falando de uma minoria, como por exemplo as mulheres lésbicas, essa importância fica mais relevante, porque a gente sabe que as minorias sociais correm o risco de serem acometidas pelo fenômeno do estresse de minoria. Ou seja, elas têm maior propensão a desenvolver problemas de transtorno de saúde mental e até negligência aos serviços de saúde por conta da vulnerabilidade social", diz Vitor.
No ponto de vista de Lúcia, da Febrasgo, o treinamento adequado para diferentes orientações sexuais e identidades de gênero é fundamental. "Isso precisa ocorrer já na graduação, não forma de uma especialização, por exemplo. Falar em 'especialização' é discriminar de novo", atesta. "Mas também é preciso haver interesse da classe médica em buscar informação e entender como prestar um atendimento eficiente e humanizado para pessoas diversas e suas necessidades", completa Dani.