"Na aldeia, não existe diferença entre uma criança autista e outra que não é", diz Márcia Kambeba
Ativista, escritora e poeta, Márcia Kambeba é mãe de Carlos Augusto, criança com autismo, e luta pela inclusão e rompimento de estigmas
Márcia Kambeba, escritora, ativista e poeta, lembra com clareza o momento em que percebeu que seu filho, Carlos Augusto Kambeba, indígena do povo Omágua/Kambeba, poderia ter autismo. Aos três anos, ele apresentava um atraso na fala e repetia perguntas sem entender o significado. "Você quer água?", questionava Márcia. E ele, em seguida, lhe entregava a mesma pergunta como resposta. "Foi aí que eu comecei a desconfiar", conta. O diagnóstico só veio quando o garoto completou nove anos, depois de muitas consultas e avaliações. A partir daí, Kambeba iniciou uma jornada pessoal em busca de ferramentas para possibilitar ao filho as melhores experiências possíveis, tanto de socialização, quanto de aprendizado. "O meu filho me motivou a começar a ser uma ativista. Se ele fosse uma pessoa com deficiência de fala, eu seria uma ativista disso. Se ele fosse uma pessoa com deficiência visual, idem. Como é autista, é pelo autismo que estou na luta. Meu filho me faz estar nessa causa em prol de outras crianças autistas, pensar como a educação pode ser inclusiva, quais metodologias precisam ser utilizadas e como cobrar essas metodologias. É isso que venho fazendo", relata.
A luta pela inclusão e igualdade tem sido pauta constante na sociedade, mas ainda existem grupos que sofrem com preconceitos e estereótipos enraizados. No caso das crianças indígenas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), um dos pontos mais importantes é normalizar a condição, desviando do olhar folclórico e estigmatizado. "Não tem divisão entre uma criança autista indígena e uma criança autista que nasceu na cidade. Criança autista é criança autista. Estamos no século 21, temos acesso a internet, assim como eu busquei informações, outras mães e pais também buscam. Precisamos parar de olhar para isso como se fosse uma coisa de outro mundo", reforça.
A falta de representatividade em estudos sobre autismo colabora diretamente na compreensão limitada e incompleta das experiências de pessoas diversas. Faltam pesquisas recentes no Brasil, porém, um estudo da Universidade da Carolina do Norte, publicado em 2022, alertou para a necessidade de recortes de gênero e etnia. A maior parte dos dados e informações sobre TEA desconsideram pessoas não-brancas, o que dificulta diagnósticos e pautas de interesse, fortalecendo o imaginário social de que o transtorno não alcança certos corpos e contextos sociais. "Não podemos estigmatizar crianças autistas, sejam elas da aldeia ou da cidade. Ser mãe de um menino autista indígena, é a mesma que ser mãe de qualquer criança autista. É sofrer quando seu filho é hostilizado, sofrer com essa sociedade preconceituosa, racista. A gente sofre quando os direitos deles são negados".
Aqui, a educação tem papel essencial. Não só no processo de aprendizado, mas na autoconfiança, conforto e segurança das crianças. Márcia, que mora em Castanhal, no Pará, havia matriculado o filho em uma escola pública local. O menino não recebeu acolhimento, e foi agredido por três crianças, ao mesmo tempo. "Ele não entende a violência, então, ficou parado enquanto batiam nele. Levou socos e foi chutado nas pernas, chegou em casa roxo. A escola não soube lidar, e tirei ele de lá", conta ela, que matriculou o filho em uma escola particular em seguida, na qual ele encontrou a sensibilidade e proteção. "Ele está lá até hoje. A escola só ia até o quinto ano, mas, a cada série que ele avança, a diretora abre uma nova classe para que ele não precise sair de lá. Ano que vem, ele cursa a sétima série", revela. Márcia atua juntamente ao corpo pedagógico, desenvolvendo metodologias e construindo lado a lado a melhor adaptação do garoto.
Para ela, é importante compreender que o aprendizado deve ser divertido e leve, sem desrespeitar os limites da criança de forma forçada e rígida. "Vamos buscando formas de ensinar de forma lúdica, fazer o que ele gosta e se interessa. Quando ele aprende uma palavra nova, escrevemos na terra. Vamos criando frases com as palavras formadas, brinco de amarelinha. Tudo precisa ser gratificante para ele, tudo tem que ser legal para que o aprendizado seja prazeroso", ressalta.
Na comunidade indígena, a igualdade é uma prática diária e as crianças brincam juntas sem preconceitos. "Na aldeia, não tem diferença entre quem é autista e quem não é autista", afirma. "Não tem essa separação que existe na cidade", acrescenta. Nesse ambiente de cooperação, união e humildade, todos têm o mesmo tratamento e são incentivados a se ver e se reconhecer no outro. Segundo a mãe, é um lugar de fortalecimento onde a inclusão é natural.
A experiência com o filho motivou a escritora a se tornar uma defensora incansável dos direitos das pessoas no espectro autista e suas famílias. Os estudos e conhecimentos valiosos a capacitaram para atuar de forma engajada e comprometida, principalmente, no fornecimento de apoio e recursos dentro das comunidades indígenas. "Ajudo muitas mães autistas que estão na aldeia a compreender o que é o autismo, a buscar meios de lutar pelos direitos de seus filhos fora das aldeias. Tenho esse conhecimento e fico feliz em estar passando. Não sou melhor que ninguém, mas estudei um pouquinho, fui na escola do branco, aprendi lá. É por isso que vamos para a universidade, para voltar para a aldeia e ajudar quem precisa. O autismo é um conhecimento que pertence a sociedade não-indígena, é a ciência que estuda, então, a gente tem que buscar compreender como isso se dá. E aceitar e conviver com os autistas, de igual para igual".