Nduduzo: artista sul-africana luta para permanecer no Brasil após decreto de expulsão
Presa por quatro anos, a artista foi envolvida inocentemente em um esquema de tráfico de drogas internacional e já está livre; Nduduzo Siba tem direito de ficar no país, de acordo com mudanças na Lei de Migração, que não obriga mais estrangeiros a casar com brasileiros, ter filhos filhos ou estar em situação de refúgio para garantir estadia
"Minha vida agora é aqui. Não por ter marido ou filhos, mas porque tenho a minha arte e quero dar voz às mulheres que estão em cárcere", compartilha a sul-africana Nduduzo Siba, de 34 anos. Cantora, dançarina e artista zulu, ela luta atualmente para não ser expulsa do Brasil.
Nduduzo nasceu em Durban, na África do Sul, em um lar privilegiado, como ela mesmo conta. Antes de sua prisão, ela trabalhava como comissária de bordo, quando em 23 setembro de 2013, após uma viagem ao Brasil, foi parada pela Polícia Federal no aeroporto de Guarulhos (SP).
Os agentes encontraram drogas dentro de embalagens de perfume que estavam em sua mala. Nduduzo conta que essa foi a armadilha que caiu, pois uma amiga havia pedido para que ela levasse encomenda, entegue à ela por um homem desconhecido.
"Esse é o maior trauma da minha vida. A pessoa que eu considerava a minha melhor amiga fez isso comigo, o que custou quatro anos da minha liberdade. Eu não gosto de tocar nesse assunto porque aqui no Brasil eu sou ainda vista como ex-detenta", desabafa Nduduzo.
"Um estrangeiro africano é tratado muito diferente de um europeu. A polícia já nos vê, negros africanos, como uma ameaça, como bandidos, nunca como vítimas", completa.
O tempo na prisão, de acordo com a artista, só não foi pior por conta das pessoas, tanto outras mulheres detidas quanto sua professora de música, chamada Carmina Juarez.
"Eu não pude contar com o sistema, nem português eu falava. Quem me ajudou foram as pessoas, do começo ao fim. Por isso eu preciso ficar aqui. Existem ainda muitas mulheres encarceradas, que quando são soltas não têm para onde ir, assim como eu já estive nessa situação", lamenta.
Soltura
Em 17 de março de 2017, Nduduzo foi solta em liberdade condicional. Ela relembra que o agente que a soltou simplesmente falou "você já pode ir, está livre".
"Eu não conhecia ninguém além da minha professora que entrava na penitenciária para as aulas de música. O papel da condicional me garantia uma passagem de ônibus gratuita, mas é muito humilhante essa situação".
Na ocasião, chovia muito, de acordo com Nduduzo. Então, a sul-africana seguiu até uma galeria no centro da capital paulista, na esperança de encontrar outros estrangeiros. Lá, Nduduzo encontrou uma ex-colega de presídio que lhe emprestou dinheiro para uma noite num hotel e lhe passou o telefone da professora de música. Foi ela quem a ajudou com moradia, relembra a artista. "Sou muito grata à ela por tudo que fez por mim. É isso que me move, a boa vontade das pessoas", comenta.
"A arte me acolheu. Algumas pessoas me acolheram. Tentam apagar corpos que vivem da arte e corpos pretos que estão em cárcere. As mesma pessoas que pagam impostos para manter esse sistema racista e xenofóbico são as que não querem que as pessoas encarceradas se reintegrem à sociedade. Não faz sentido", completa a artista zulu.
Expulsa?
"Como querem que eu volte agora que estou construindo a minha vida? Tenho amigos, muita vontade de trabalhar com a minha arte. Dizem que eu posso ficar se eu me casar com um brasileiro ou tiver um filho. Como vou sustentar um filho? Por que preciso depender de homem? Não sou uma refugiada, pois não corro risco nenhum na África do Sul. Eu só quero ter o direito de escolher", enfatiza Nduduzo.
A advogada Karina Quintanilha, pesquisadora, membro do Fórum Fronteiras Cruzadas e que acompanha a história de Nduduzo Siba desde o início, explica que, em 2018, a artista conseguiu apoio para apresentar recursos administrativos por meio do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, que coopera com a Defensoria Pública da União (DPU).
"Além desses recursos, a DPU entrou também com ação judicial na Justiça Federal, baseando-se em um dispositivo da nova lei de migração (LDM), Lei 13.445/17, para buscar revogar o decreto expulsório da Nduduzo judicialmente. No Brasil, ao contrário de muitos países, a lei brasileira prevê a deportação e expulsão via administrativa sem exigir sequer audiência com um juiz", explica a jurista.
Na peça judicial, a DPU defende a permanência de Nduduzo com base na Constituição Federal e na "mudança de paradigmas, enaltecendo a condição de sujeito de direito dos migrantes", referindo-se à nova lei, segundo Karina. A DPU ainda argumenta que o tráfico privilegiado não é considerado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com elevado grau de gravidade e que o caso de Nduduzo não reúne os requisitos para expulsabilidade, já que ela não cometeu um crime considerado grave e demonstrou os laços sociais, afetivos e emocionais constituídos no Brasil.
"Dessa ação da DPU, resultou uma sentença super emblemática que revogou a expulsão com base na ressocialização prevista na Lei de Migração e reconhecendo que a expulsão no caso dela seria medida desproporcional", diz Karina. No entanto, segundo a advogada, em 2021 houve uma reviravolta do caso na 2ª instância.
"O TRF3 [Tribunal Regional Federal da 3ª Região] reverteu a suspensão da expulsão com base no argumento falso e racista do Ministério da Justiça de que a Nduduzo representaria um 'perigo' e utilizando de forma inconstitucional o Estatuto do Estrangeiro como base. Enfim, essa reviravolta levou a uma nova mobilização, tem um novo abaixo-assinado pelo 'Nduduzo Fica' e pela garantia do seu direito à regularização migratória, pois ela está indocumentada, e isso gera uma série de outras violações de direitos", comenta a jurista.
Situação atual e próximos passos
"A Nduduzo está em um limbo jurídico e o contexto político é de sistemáticas violações de direitos no Brasil, no campo das migrações, por exemplo, estamos acompanhando números recorde de deportação e de pessoas indocumentadas", enfatiza Karina Quintanilha.
Já na vida pessoal, a música virou atividade profissional da sul-africana Nduduzo Siba. Ela sobrevive de seu trabalho como artista, dá aulas de dança zulu e faz shows, solo ou com outros músicos, apresentando canções sul-africanas e de outras nacionalidades em bares e eventos de São Paulo.
A advogada Karina explica que, no momento, a sua permanência está nas mãos da justiça ou de uma nova decisão de autoridade competente que revogue o decreto de expulsão.
"O Ministério da Justiça ignorou o fato novo que foi o indulto obtido por Nduduzo no Judiciário com perdão do restante da pena - que enseja o reconhecimento jurídico de que tráfico privilegiado, ela foi condenada como 'mula', não é considerado crime revestido de alto grau de gravidade", avalia a jurista.
Em fevereiro deste ano, ativistas se reuniram para enviar memoriais ao vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região a fim de solicitar prioridade na admissão do recurso especial interposto pela Defensoria Pública da União em 30/08/2021 com o deferimento do efeito suspensivo da expulsão.
"Também solicitamos a análise dos fatos alegados contra expulsão de Nduduzo Siba do Brasil e pela defesa dos direitos garantidos pela Lei de Migração, que recebeu mais de 800 assinaturas online de pessoas e movimentos que se solidarizam e buscam justiça para Nduduzo. Não tivemos resposta, e o processo segue parado sem que o recurso da DPU tenha sido encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), como era de se esperar", lamenta a jurista.
Além da batalha judicial contra a expulsão, a advogada afirma que o mais urgente no momento é garantir judicialmente a regularização migratória para a Nduduzo.
"Ela está enfrentando uma série de violações de direitos, inclusive perdendo oportunidades de trabalho, pois os pedidos de autorização de residência têm sido reiteradamente negados pelo Ministério da Justiça mesmo a Nduduzo comprovando que tem esse direito", diz a jurista.
Campanha #NduduzoTemVoz
A luta pública da Nduduzo contra a expulsão criou uma rede em sua solidariedade. Na época do decreto, apoiadores da artista encaminharam cartas à Polícia Federal para a sua permanência e, com o apoio do Fórum Internacional Fronteiras Cruzadas, um dossiê foi criado para ajudar no trabalho da DPU de reunir evidências para convencer o Judiciário pelo direito de permanência dela no Brasil.
"No dia 8 de março de 2018 - Dia Internacional da Mulher - ajudamos a Nduduzo a lançar a Campanha #NduduzoTemVoz no meio virtual e nas manifestações pelos direitos das mulheres nas ruas de São Paulo", comenta Karina.
Por meio do seu protagonismo e da rede de solidariedade, a sul-africana tem alcançado maior projeção como artista e como figura pública, realizando shows, palestras, e participando de produções no campo do cinema.
A campanha #NduduzoTemVoz ganhou também apoio de parlamentares, como a deputada estadual Erica Malunguinho e os vereadores paulistanos Eduardo Suplicy (PT), Luana Alves (PSOL) e Erika Hilton (PSOL), além de entidades como o Movimento Negro Unificado (MNU).
Atualmente, após a reviravolta na 2ª instância da justiça, a campanha abriu um novo abaixo-assinado: uma Carta Aberta ao Judiciário contra a sua expulsão e em defesa da Lei de Migração.
Nduduzo afirma que continuará lutando para que sua permanência seja garantida dentro da Lei. Para a artista, a campanha #NduduzoTemVoz é mais uma prova de que por mais que o sistema brasileiro seja xenofóbico e racista, ainda há muitas pessoas preocupadas em ajudar seus semelhantes.
"Quero trabalhar, mostrar ao mundo as minhas raízes ancestrais, dar voz às mulheres encarceradas e ter a oportunidade de viver da minha arte sem medo da expulsão", finaliza.
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