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Nem a tragédia está imune ao racismo

Se recusar a cumprir funções de Estado numa situação como a do RS é corroborar que existe uma hierarquia entre quem deve ser assistido

23 mai 2024 - 13h27
(atualizado às 16h23)
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Uma das marcas do Brasil já foi cantada de diferentes formas, mas ficou muito conhecida pelo verso de Jorge Ben: "um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza".

A benção, em questão, pode ter diferentes sentidos, mas um deles se deve ao fato do Brasil não ser acometido por catástrofes naturais de grande envergadura como terremotos, maremotos, erupções vulcânica, tufões e furacões. É um país de natureza bonita, diversificada e tranquila.

Essa forma de entender o Brasil amplia ainda mais o sentimento de horror e desamparo frente à tragédia que acometeu o estado do Rio Grande Sul nas últimas semanas. A maior tragédia climática do RS, que conseguiu relativizar o estrago causado pela enchente de 1941 em Porto Alegre, quando 24 dias de chuva torrencial elevaram o nível do lago Guaíba a 4,71 metros, deixando boa parte da região central da cidade inundada, afetando diretamente a vida de um quarto da população da cidade.

No entanto, é inegável que a atual tragédia é mais complexa que aquela de 80 anos atrás. Conforme noticiado pelo The Intercept, parte dos estragos poderia ter sido evitada se o poder público tivesse destinado a verba existente para investimento, atualização e manutenção das estruturas que poderiam prevenir as enchentes.

5 situações do dia a dia que revelam racismo velado 5 situações do dia a dia que revelam racismo velado

Outro ponto fundamental foi a pouca importância para estudos científicos que apontavam a possibilidade de eventos dessa envergadura no estado. Mas há uma preocupação mundial com a situação do Rio Grande do Sul, já que ela está sendo lida como uma tragédia climática cujas causas estão diretamente ligadas ao aquecimento do planeta Terra, que está se tornando uma questão incontornável.

Junto com a implementação efetiva de políticas públicas que previnam esse tipo de situação, precisamos enfrentar com urgência um debate sobre como o capitalismo já se mostrou um sistema insustentável a longo prazo, que irá consumir todas nossas reservas naturais.

E é preciso dizer que o capitalismo não é um ente sobre-humano que governa nossas vidas. O capitalismo somos nós: nosso padrão de consumo desenfreado, nossa produção exacerbada de lixo, a emissão estratosférica de carbono. E, no Brasil, o capitalismo também é o agronegócio e sua dinâmica de destruição de matas e ecossistemas inteiros, em nome de uma produção gigantesca de alimentos em um país em que quase 10% da população passa fome.

Então, compreender as razões que estão por trás da tragédia do Rio Grande Sul também significa olhar para nossa história num arco temporal maior, entendendo, por exemplo, porque o Brasil nunca enfrentou a reforma agrária, se mantendo desde os tempos coloniais como uma terra de poucos latifundiários. E, aqui, é preciso reafirmar que o governo estatual estava tentando alterar aproximadamente 500 pontos do código florestal do Rio Grande do Sul para privilegiar os interesses de setores do agronegócio.

Ignorância caminha de mãos dadas com o racismo

Acontece, que parece muito mais fácil suspender todo esse debate e reduzir o que aconteceu à ira de Deus. Esse foi o argumento utilizado por uma influencer cristã. A ira de Deus por conta da grande quantidade de terreiros de candomblé existentes no Rio Grande do Sul. A ignorância que caminha de mãos dadas com o racismo mostrou sua cara feia mais uma vez, num combo perverso de racismo, negacionismo, xenofobia e intolerância religiosa. Para setores ultraconservadores, o Brasil não parece ser mais um país abençoado por Deus.

Ainda que devam existir aqueles que concordem que esse combo, muita gente criticou a tal influencer, a ponto dela decidir fechar suas redes para o público mais amplo.

Só que o racismo tem várias formas de se expressar.

Na última semana, o governador Eduardo Leite disse que o "poder público não tem estrutura suficiente para atender todas as pontas". Aqui ele não estava tratando das dificuldades gerais que o poder público está enfrentando para tentar controlar as consequências da tragédia. Essa fala tinha endereço: responder às súplicas das comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul.

O estado tem 170 comunidades quilombolas e pelo menos 15 delas ficaram completamente isoladas devido às enchentes. Todas as cerca de 6,8 mil famílias quilombolas do Rio Grande do Sul foram afetadas. Se recusar a cumprir as funções de Estado numa situação dessas, é corroborar que existe uma hierarquia entre quem deve ser assistido pelo poder público. E, como não poderia deixar de ser, essa hierarquia também obedece a uma determinação racial.

Infelizmente, no caso do Rio Grande do Sul, não podemos culpas apenas as mudanças climáticas. É necessário entender como os governos do estado têm agido, quais são os interesses e as pessoas que são privilegiadas tanto na implementação (ou não) de políticas públicas, quanto na hora de decidir que "ponta" o estado vai abraçar em ações de salvamento. Porque, como estamos vendo, nem mesmo numa tragédia dessa natureza, o racismo fica imune.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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