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"Nós incomodamos": o legado de Marielle para as mulheres negras na política

Quatro anos após o assassinato de Marielle Franco, que completaria 43 anos nesta quarta (27), mulheres negras se preparam para encarar uma corrida eleitoral regada a violências e desafios

27 jul 2022 - 13h54
(atualizado às 14h32)
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Ilustração mostra a vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, e mulheres negras que carregam seu legado.
Ilustração mostra a vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, e mulheres negras que carregam seu legado.
Foto: Ilustração: Alma Preta Jornalismo / Alma Preta

"Nós não queremos ser mártires, nos queremos vivas!", exclama a deputada federal Vivi Reis (PSOL-PA). Este ano, mulheres negras que concorrerão a cargos eletivos se preparam para encarar o pleito que, segundo elas, é um dos mais delicados da história do país. Muitas dessas mulheres são fruto da luta da ex-vereadora carioca Marielle Franco, levada à condição de mártire após seu brutal assassinato em 14 de março de 2018. Ela completaria 43 anos de idade nesta quarta-feira (27).

Quatro anos se passaram desde a tragédia que mudou a história da política nacional e elevou o debate sobre a entrada e permanência de mulheres negras nos espaços deliberativos de poder. Hoje, candidaturas femininas em todo o Brasil se baseiam na trajetória de Marielle para disputar narrativas e promover mudanças estruturais pautadas nas agendas feministas, antirracistas, voltadas para os direitos humanos e pela equidade de gênero. 

"As sementes plantadas por Marielle sem dúvida viraram a chave para muitas de nós, que passamos a nos enxergar enquanto sujeitos políticos destas mudanças. Mas agora, mais do que nunca, precisamos reforçar uma rede de apoio e solidariedade, pois as violências permanecem e, assim como Marielle, nós incomodamos", diz Vivi Reis.

De acordo com Fabiana Pinto, coordenadora de incidência política do Instituto Marielle Franco e coordenadora do projeto Estamos Prontas, a morte de Marielle trouxe a urgência de adentrar o poder. Para ela, se antes as mulheres negras já estavam organizadas para estarem na política, a partir da campanha e do assassinato de Marielle, essas candidaturas ganharam um caráter emergencial. Então, em 2018, muitas parlamentares se elegeram com esse intuito de continuar o que ela representava: a luta das periferias, do movimento LGBT e pela vida.

"Ao mesmo tempo em que era produzido o fenômeno do bolsonarismo, com Bolsonaro eleito com um discurso de ódio muito grande, existe um grupo de mulheres negras produzindo uma revolução no sentido de garantir uma resposta à morte da Mari [Marielle Franco] e ao conjunto da sociedade, sobre qual é o lugar da mulher", considera a especialista.

O legado de Marielle Franco

Após o assassinato da ex-vereadora houve um esforço do próprio mandato, mas que foi sustentado pelos movimentos sociais, para a aprovação de diversos projetos de lei deixados por ela na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. A Câmara Municipal também aprovou a nomeação de seu plenário como Plenário Marielle Franco. A ex-parlamentar se tornou símbolo internacional, sobretudo da luta de mulheres negras, com o rosto estampado em camisetas, cartazes e publicações por todo o mundo.  

Adriana Geronimo é co-vereadora em Fortaleza, no Ceará. A assistente social, moradora da comunidade Lagamar, disse que Marielle Franco é uma das maiores inspirações políticas. Para ela, Marielle aponta que é possível resgatar a essência do fazer político com transparência, honestidade, ética, afeto e acolhida. 

"Marielle impactou a minha vida e me deu coragem para entrar na política institucional. Sua fala, a qualidade nos posicionamentos e o olhar forte me mostram a cada dia que é urgente sermos mais. Precisamos ser uma multidão negra para inverter a lógica do poder, para o poder estar nas mãos do povo" afirma a cofundadora da FavelAfro, cooperativa de mulheres periféricas. 

Já a pesquisadora, escritora e ativista carioca Rafaela Albergaria, conta que conheceu Marielle quando era estagiária de Serviço Social no Complexo Penitenciária de Gericino, em Bangu. Ela salienta o legado e os ensinamentos da ex-vereadora.

"Somos movidas pela urgência e pelo sonho de uma existência digna. A mudança e a construção política de mulheres negras é revolucionário, porque é pautada pelo afeto, pelo cuidado, pela valorização da vida", destaca.

Mulheres negras no poder

As mulheres em geral compõem a maior parte do eleitorado brasileiro, mas ainda estão longe de conseguir se eleger na mesma proporção dos homens. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas Eleições Gerais de 2018, 290 parlamentares foram eleitas, um aumento de 52,6% em relação a 2014. Destas, 77 foram eleitas para a Câmara dos Deputados e 161 para as Assembleias Legislativas. No Senado Federal, sete foram eleitas - mesmo número de 2010 - representando 13% dos parlamentares da casa.

Mas, em se tratando de mulheres negras, a disparidade é muito maior. Elas representam 25,38% da população brasileira, segundo o Censo de 2010, mas ocupam apenas 2% das cadeiras do Congresso Nacional. Em 2018, 13 candidatas autodeclaradas pardas ou pretas conseguiram vaga para legislar - 12 na Câmara e uma no Senado.

Leia mais: Uma em cada três deputadas eleitas como negras, em 2018, se declaram brancas hoje

A professora Jana Almeida, pré-candidata a deputada distrital pelo PSB-DF, disse que estar na disputa eleitoral pela primeira vez é um grande desafio, mas também tem um grande significado encarnar uma candidatura que apresenta identidade e representatividade das minorias sociais.  

"É importante que a gente ocupe esses lugares porque as referências que as pessoas tem de vida são apenas de atividades subalternas e elas sabem o quão difícil é romper com esse racismo estrutural. Ao passo que quando você apresenta uma candidatura de uma mulher preta independente, isso já significa uma vitória, porque nós sabemos o quanto é difícil chegar lá", desabafa.

Barreiras políticas

Porém, estar nos ambientes de decisão não é fácil. A pesquisa Violência Política de Gênero e Raça no Brasil, realizada pelo Instituto Marielle Franco, aponta que as principais barreiras de acesso e permanência na política para mulheres no Brasil são a falta de recursos para a campanha e a falta de apoio do partido ou da base aliada, além do assédio e violências no espaço político e da falta de espaço na mídia em comparação aos homens. 

Dentre as mulheres eleitas para as prefeituras municipais, por exemplo, mais da metade (53%) afirmou ter sofrido assédio ou violência política pelo simples fato de serem mulheres.

Outra dificuldade encontrada por mulheres negras na política é o nível de formação acadêmica. Ainda existe uma barreira maior de elegibilidade para as mulheres negras que não têm um ensino superior. Enquanto homens brancos com ensino médio incompleto conseguem se eleger com facilidade. Em 2020, 78% das mulheres negras eleitas apresentavam ensino superior completo.

"Para mulheres negras chegarem no mesmo lugar dos homens brancos, elas precisam, necessariamente, ter anos de estudos a mais", avalia a pesquisa.

Além disso, há o jogo político a ser vencido: o convencimento dos partidos em apoiar candidaturas femininas e negras. Aline Dias, que tentou a sua primeira pré-candidatura à deputada pelo PT, disse que, por ser inexperiente, tem passado por uma invisibilização dentro na corrida para ser candidata.

"O maior processo de violência que passei e venho passando é não poder exercitar um direito que é meu e é legítimo e não puder sequer fazer a defesa da minha pré-candidatura como deputada federal", relata.

Garantindo direitos

Nessas eleições e até 2030, o voto em mulheres e em pessoas negras terá peso dois para a distribuição do fundo partidário e eleitoral. Mulheres negras só contarão uma vez, ou como mulher ou como negra. Esta reforma eleitoral foi encabeçada, em 2021, pela deputada Benedita da Silva (PT-RJ) e aclamada pelos ministros do TSE. Mas a legislação eleitoral vem sendo aperfeiçoada há anos, para que mulheres e pessoas negras possam exercer a política.

Fabiane Pinto explicou que essa legislação impõe o peso dois sobre os votos, e não sobre as pessoas eleitas ou candidaturas. Assim, existe uma tendência dos partidos políticos a buscarem pessoas negras ditas 'puxadoras de voto'. De acordo com ela, as legendas não têm interesse em que os votos sejam pulverizados em várias candidaturas de mulheres negras.

"A nossa leitura é que essa é uma legislação incompleta, pois fortalece essa questão do sistema político de ter um só representante. Muitas candidatas estavam receosas do partido não reconhecer sua candidatura. Isso é algo muito prejudicial, pois impede o fazer democrático, impede que as mulheres negras sejam vistas em sua diversidade", ressalta.

Para que se tenha candidaturas possíveis e com um foco nos direitos humanos, o Instituto Marielle Franco faz uma série de ações de fortalecimento e incidência política. Este ano, o principal projeto é o Estamos Prontas, uma iniciativa em conjunto com o Movimento Mulheres Negras Decidem. O eixo central é o fortalecimento das habilidades de mulheres negras, que estão associadas a movimentos sociais, para fins eleitorais.

Vivi Reis conclui que, uma vez que mulheres negras entendam os processos políticos, legislativos e eleitorais, deve-se unir forças porque "não é fácil estar nesses espaços". 

"Precisamos nos fortalecer, construir redes de apoio, cuidando do nosso emocional e nos blindando com a força e a potência que imerge dos movimentos negros, para que possamos enfrentar esse espaço tão duro, racista, antiquado e elitista que são as esferas de poder do Brasil e ocupar a política, levando conosco mais pretas e pretos", completa a coordenadora de incidência política do Instituto Marielle Franco.

De Antonieta a Malunguinho: as mulheres negras pioneiras na política brasileira

Alma Preta
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