Nova caderneta de gestante do SUS é considerada um retrocesso
Médicos afirmam que documento naturaliza procedimentos considerados violência obstétrica além de ocultar informações relevantes
Após o lançamento da nova caderneta de gestante feita pelo Ministério da Saúde no início de maio, a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras em conjunto com a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade emitiu uma nota de repúdio sobre o conteúdo do material, que naturaliza procedimentos já reconhecidos como violência obstétrica. O evento de apresentação da nova caderneta e as falas do secretário da atenção primária do governo federal, Raphael Câmara Medeiros Parente, provocou uma onda de reações nas redes sociais, com especialistas fazendo postagens e lives para esclarecer informações sobre gestação e parto.
O novo documento orienta as gestantes de que episiotomias (corte feito no perineo da mulher durante o trabalho de parto) podem ser realizadas, mesmo sendo uma prática já descartada por ser considerada violenta e sem qualquer comprovação científica de sua eficácia. A nova caderneta também garante cesáreas eletivas pelo SUS, não menciona o trabalho das doulas que colaboram como apoio emocional e assitencial antes, durante e depois do parto, e também deixa de mencionar o plano de parto. "A OMS, já em 1996, classificava a episiotomia como uma prática prejudicial e desnecessária que deveria ser extinta. Como agravante, esse é um procedimento muitas vezes realizado sem o consentimento ou explicação prévia à mulher, outros tantos sem nem mesmo realizar anestesia prévia ao corte. Trata-se de uma mutilação genital que agride a integridade e autonomia da mulher e que não encontra respaldo de benefício na medicina baseada em evidências.", rebate a nota.
Além das instruções descritas na caderneta, a nota também repudiou a fala do secretário da atenção primária do governo federal, que defendeu a manubra de Kristeller e desautorizou o auxílio prestado pelas casas de parto. "Nós, médicos e médicas de família e comunidade, assim como obstetras e ginecologistas, que executam diariamente o acompanhamento pré-natal e assistência ao parto de pessoas gestantes e puérperas em serviços públicos de saúde; entendendo nosso papel técnico e político; não poderíamos nos omitir às falas do atual secretário da atenção básica do governo federal. Achamos pertinente elucidar alguns temas apontados pelo secretário, à luz das evidências científicas e princípios éticos da prática médica", diz um trecho da nota.
Reações
A publicação da nova caderneta e a postura do secretário durante o evento provocou uma onda de reações de ginecologistas, obstetrizes, pediatras, doulas e educadoras perinatal nas redes sociais.
“Quando o Ministério da Saúde coloca informações equivocadas e comprovadamente ultrapassadas num documento oficial que vai ser distribuído nas UBSs de todo País, está relativizando tudo o que ensinamos as mulheres sobre o que pode ser uma violência obstétrica. Aquela mulher vai ler a informação errada num documento oficial e vai acreditar, e isso é muito grave˜, considerou a doula Jaquelini Calandrino.
Além de ser mãe de duas crianças e educadora perinatal, ela sofreu violência obstétrica durante o parto de seu segundo filho. "Eu estava na fase expulsiva do parto, não deu tempo de chegar ao hospital. a equipe médicame atendeu dentro do carro. Tentaram fazer manobra de Kristeller, ficaram o tempo todo tentando retirar o bebê com as mãos. Até hoje não consegui superar esse trauma, então decidi estudar, me profissionalizar e criar conteúdo para que outras mulheres não passem pela mesma coisa".
A médica obstetriz Ana Bárbara Januzz usou suas redes sociais para rebater e esclarecer informações contidas na caderneta, durante uma live no Instagram. "Não há qualquer evidência científica que comprove que a episiotomia é eficaz em qualquer cenário durante um parto.
A educadora perinatal Brena Limonel, do perfil Bora Parir, também fez uma live com a advogada especialista em violência obstétrica e presidente do Nascer Direito coletivo nacional de combate à violência obstétrica, Ruth Rodrigues para desmentir as informações contidas na caderneta. "Estamos trabalhando para levar uma denúncia ao MP, porque essa caderneta é uma violação aos direitos da mulher. A caderneta é um instrumento de atenção primária, é o que chega na mulher que está grávida. O impacto é ruim porque ficam menos informadas e acreditando que não tem certos direitos. Juridicamente falando, temos as diretrizes de assistência ao parto normal que não foram revogadas e outras portarias do Ministério da Saúde que corroboram pra essa humanização e não estão na caderneta. Se a mulher não tem informação, ela acha normal passar por certas violências", explicou Ruth.