O arquivo como utopia: podcast gargalheira estreia terceira temporada
Projeto reúne vozes afro-brasileiras do passado e presente nas artes visuais O post O arquivo como utopia: podcast gargalheira estreia terceira temporada apareceu primeiro em AlmaPreta.
Por Kleber Amancio* e Matheus Gato*
Estreia este mês a terceira temporada do podcast @gargalheira, desta vez, em parceria com a agência Alma Preta Jornalismo. O projeto, que realiza um conjunto de entrevistas com artistas afro-brasileiros, como muitos outros do gênero, teve início durante a pandemia de covid-19. Naquele momento, como professores universitários, estávamos perplexos com a capilaridade dos discursos negacionistas orquestrados pela extrema direita instalada no poder, a partir do mandato de Jair Bolsonaro (2018-2022).A recusa ao diálogo pacífico e persuasivo de ideias e a negação do método científico se expressaram na rejeição às vacinas contra a Covid-19, de forma letal e absurda.
Neste sentido, a insistência no diálogo aberto e franco com os artistas e seu registro público era uma aposta na criatividade, nas possibilidades de transformação crítica do olhar para o mundo, no potencial da vida mesmo enquanto o fascismo empilhava corpos e mais corpos à nossa volta. Era preciso deixar o testemunho de pessoas que usando o corpo, tinta, papel, fotografia, bronze, plantas, areia, ferro, nanquim, búzios, panos, madeira, papelão, teciam uma outra memória da experiência afro-diaspórica. Tudo isso para construir um novo território para os nossos sentidos. Um lugar onde a liberdade é cultivada apesar de tudo.
A ideia de @gargalheira surgiu desse ímpeto de construir uma espécie de arquivo que nos parecia urgente: a formação de um acervo capaz de registrar as vozes de artistas visuais afro-brasileirxs. De modo que seja possível descobrir suas ideias e opiniões a respeito de suas produções, mas também acerca do mundo da arte. O nome do podcast é uma homenagem a Sidney Amaral (1973-2017) cuja obra, Gargalheira ou Quem falará por nós?, interroga sobre quais condições a gente negra pode ou não constituir uma voz no mundo público. Questão que evocaa imediatamente a história de silenciamento e invisibilidade que marca a trajetória social de diversos artistas negros e a violência simbólica implícita nos critérios eurocêntricos de classificação e canonização artísticas. Tais padrões são visíveis no uso abusivo e generalista de termos como "naify" ou "primitivo" para categorizar as obras de artistas negrxs. Enquadramentos racistas que, além de simplificar a potência expressiva dessas formas, também as rebaixam enquanto "arte menor".
Por outro lado, o próprio conceito de "arte afro-brasileira", por exemplo, foi e continua sendo disputado por historiadores, sociólogos, críticos, museus, galerias, o mercado de arte ou ainda pelxs próprixs artistas. Se hoje tal conceito parece indicar mais um projeto político em prol da maior representatividade de artistas e curadores no mundo da arte, do que propriamente uma agenda estética comum e unificada, trata-se de mais um sintoma dessas lutas que envolvem classificação, reconhecimento e consagração. Essa questão é das mais espinhosas em um contexto que o sistema de arte brasileiro, tradicionalmente controlado por mãos brancas, parece estar em cheque. Dos grandes museus, instituições culturais e galerias à Bienal de São Paulo, agentes que tradicionalmente ignoravam/subalternizavam esses sujeitos têm reestruturado seus discursos, sua maneira de lidar com seus corpos e as narrativas que produzem.
Nesse quadro, o podcast @gargalheira aparece como um espaço para discutir essa cena tão contemporânea, com um público mais amplo, para além dos muros das universidades e dos círculos restritos dos experts e críticos de arte. Mas também se insurge como arquivo no qual uma outra memória cava o seu lugar.
Ouça agora o primeiro episódio da terceira temporada com Mulambo
Para essa temporada conversamos com nove artistas cujas entrevistas serão publicadas semanalmente, sempre às sextas-feiras, nos principais agregadores de podcasts.
*@ gargalheira é idealizado Kleber Amancio (UFRB) e Matheus Gatto (UNICAMP). É uma realização de núcleo Afro-Cebrap, CECULT/UFRB, Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UNICAMP, Bitita - Grupo de estudos Maria Carolina de Jesus, HCAFRO e Estúdios Alma Preta.
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