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'O debate sobre racismo não pode ser abstrato nas escolas', diz antropóloga

Angela Figueiredo afirma que coletivos antirracistas nas escolas só vão funcionar se forem para a prática

10 out 2022 - 15h11
(atualizado às 16h51)
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"Onde estão os professores negros nas escolas de elite?", questiona Angela Figueiredo, professora e pesquisadora do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
"Onde estão os professores negros nas escolas de elite?", questiona Angela Figueiredo, professora e pesquisadora do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Foto: Angela Figueiredo

Existe racismo no Brasil? Por muitos séculos, se dizia que não, que por aqui todos se respeitavam. Só mais recentemente o racismo estrutural do País entrou nas discussões sobre formação escolar, sobretudo após o advento da Lei de Cotas no acesso às universidades públicas.

Para a professora e pesquisadora do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia Angela Figueiredo, os coletivos antirracistas, que se multiplicam nas escolas privadas de elite de educação básica, não terão êxito se não saírem da discussão e partirem para a prática da convivência e do exemplo. "Onde estão os professores negros nas escolas de elite? Na escola pública, eu me lembro de professoras do primário e do secundário que eram negras. Elas foram minhas fontes de inspiração. Eu olhava e queria ser como elas, queria saber o que elas sabiam, ter a relação que elas tinham com a vida."

Angela também é coordenadora do Coletivo Angela Davis - um grupo de pesquisa ativista nas áreas de gênero, raça e subalternidade - e da primeira Escola Internacional Feminista Negra Decolonial. A educadora e antropóloga participou este ano da mesa que discutiu sobre "Como construir uma educação antirracista?" no 1.º Festival - LED Luz na Educação.

Apesar do potencial da escola na formação, como você vê o papel da instituição neste momento?

A escola tem sido um espaço de reprodução do conservadorismo e das perspectivas mais normativas. Ao mesmo tempo, é um espaço de disputa. É o que se vê quando se critica um conteúdo que supostamente prega ideologia de gênero nos materiais pedagógicos. Porque, apesar do momento, como já dizia Paulo Freire, a escola pode ser um espaço de transformação. Não é a solução de tudo, mas não pode se manter alheia.

No caso do racismo, é reproduzido na escola?

A escola não é uma ilha de igualdade e democracia. Uma orientanda minha foi a uma cidade majoritariamente negra pesquisar como se constrói o privilégio da brancura. O racismo é introjetado na cabeça da gente. As pessoas reproduzem lógicas em que o privilégio da brancura é mantido. Na escola totalmente negra, havia uma única aluna branca, e as pessoas tinham expectativas diferentes sobre ela. Uma empresa foi lá para um concurso de bolsas, e a expectativa era de que a menina branca tivesse o melhor desempenho. Ela não era a melhor, mas havia a expectativa. Porque é um sistema que estrutura nossa sociedade. E olha o perigo: há uma baixa expectativa dos professores com relação aos estudantes negros. Se ninguém tem expectativa, você também tem baixa expectativa sobre você mesmo. Um outro exemplo: uma aluna adepta de uma religião afro chegou usando branco em uma sexta e foi completamente rechaçada. Tudo isso mostra as tensões e, como disse, mostram que a escola não é uma ilha de desigualdade e democracia.

Como intervir nisso?

Precisamos trabalhar os professores para ações de sensibilidade, iniciativas em pequenas escalas. A gente deveria olhar o cotidiano nas escolas. A Lei 10.639 (que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas redes pública e particular) é rechaçada por professores que demonizam as religiões afro-brasileiras. Por isso, um ponto importante é ter formação continuada de professores, um espaço de aprender e ensinar a transgredir. A escola não pode ser a instituição que mantém regras que já não dialogam com a sociedade. A evasão, tão alta entre os jovens, mostra como o conteúdo não dialoga com o interesse dos alunos.

Ignorar a lei é quase como incentivar o racismo?

A escola não quer tratar do assunto. Mas deve. Porque antes, por séculos, se acreditava que não existia racismo no Brasil. Agora, a gente tem construído o que o movimento social chama de letramento racial, que implica um aprendizado sobre isso. Mas algumas coisas seguem dando pistas de como o assunto ainda é velado. No Brasil, você chega a uma escola com maioria negra e diz que é de classe baixa. Ou numa privada, majoritariamente de brancos, e diz que é de classe média. Tem uma linguagem de classe para explicar fenômenos de cor que estão ali gritando naquele espaço.

Nas escolas privadas - grande parte delas com porcentual ínfimo de negros - têm surgido os coletivos antirracistas, com a proposta de quebrar o racismo estrutural que vem da infância. Como você vê isso?

Como você aprende a humanizar, a respeitar a diferença, se o outro não está lá? O primeiro passo de um coletivo antirracista deveria ser pressionar para que haja professores negros. Porque hoje é como se não houvesse um corpo docente qualificado para estar nesses espaços e ganhar os salários que essas escolas de elite pagam. O debate não pode ser abstrato. Uma criança de 3 anos de idade com esse professor vai resolver o racismo estrutural rapidinho. A postura muda na convivência, não na discussão sobre algo.

Até porque uma criança aprende muito pelo que vê, pelo exemplo…

Sim, e ela vê negros na escola, mas no lugar de quem limpa. Na casa dessas crianças, a mulher negra também está lá, no papel da empregada e da babá, no mesmo lugar de subserviência. A criança já sabe: "É ela quem vai pentear meu cabelo, me dar banho, fazer minha comida". Os dados mostram que 72% dos empregos domésticos são exercidos por mulheres negras. No limite, chegamos a um ponto onde você passa na rua e vê uma menina negra pedindo dinheiro no semáforo, e é só mais uma. Se é uma garota branca, todo mundo se comove, porque ali não é lugar de uma criança branca.

E para alunos maiores?

O que não falta é material. Quando meus filhos eram pequenos, não havia livros com personagens negros. Hoje, tem muito material, inclusive de autores negros. Há produção negra relevante que precisa ser incorporada na bibliografia e de forma transversal. No geral, o que a gente vê é o tema restrito às aulas de História. Não pode. A reflexão sobre o racismo e a valorização da cultura negra precisa estar incorporada em Matemática, Geografia, Ciências, Língua Portuguesa. Para mudar o cenário, é preciso mudar a estrutura da escola completamente. É possível. Mas precisamos começar por construir um espaço de reconhecimento. Como já dizia Paulo Freire, o aprendizado se dá a partir do contexto.

Estadão
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