‘O feminismo não me enxerga, mas sigo empoderando milhares”, diz influencer trans com deficiência
Em entrevista ao Terra NÓS, a ativista PcD e LGBT Leandrinha Du Art falou sobre sexualidade, ativismo, política e afeto.
Com síndrome de larsen - que prejudica o desenvolvimento dos ossos e sendo uma mulher trans, Leandrinha Du Art é uma pessoa rara, no melhor sentido da palavra. Com tantos recortes transversais de perfil, ela encontrou na própria existência uma forma de se comunicar com o mundo e gritar: Pessoas com deficiência também transam e falam sobre gênero. E ela faz isso sem cerimônias, vergonha ou medo. Não bastasse ser comunicadora, ativista LGBT e pessoa com deficiência, Leandrinha também é teóloga e “metida à filósofa”, como se descreve.
Terra NÓS - Leandrinha, você é uma pessoa que reúne em si, muitos recortes de grupos sub representados no nosso dia a dia. Como isso começou pra você?
Às vezes as pessoas tem uma ideia de que nasci bem resolvida, pronta e empoderada. Eu vivi um período de adolescência e infância em hospital, tratando da minha síndrome. Quando eu saio dos hospitais no início da adolescência, percebo que meu corpo era diferente. Eu já tinha essa pressão de estar em um corpo aleijado, torto e deficiente fora do ambiente hospitalar. Então eu começo a esconder o meu corpo. Começo a usar roupas largas para esconder os braços, a falar pouco porque eu tinha vergonha da minha voz. Passei quase a minha adolescência inteira negando minha própria existência, nesse conflito muito tenso com a minha sexualidade. Eu era um menino que se sentia atraído por outros meninos e achava que eu estava errada. Mas quando eu entendo que esses impulsos sexuais não era uma coisa que eu conseguia negar, senti que era hora de dar uma reviravolta na minha vida.
E como foi esse despertar pra vida sexual?
O menino mais lindo da minha escola me cercou e disse que queria me beijar. Eu estava de moletom, me escondendo. Na hora pensei “como esse menino bonito pode olhar pro meu corpo com deficiência, emocionalmente frágil, e querer beijar minha boca?” . Ao mesmo tempo eu queria que as coisas mudassem, queria ser protagonista da minha história. Então aceitei. Ele me tirou da cadeira de rodas, me colocou em cima da pia do banheiro, nos beijamos e tivemos a minha primeira experiência sexual. Ele soube conduzir e fazer ser incrível (e olha que odeio dar crédito pra macho). Então com a experiência positiva eu começo a entender minha deficiência e me expressar, ter desprendimento sexual de forma natural.
E nesse processo você também começou a entender sua identidade de gênero?
Sim, quando começou a florar a minha sexualidade, eu entendi que não cabia mais em mim uma identidade masculina. Eu sentia falta de algo que me contemplasse 100%. Eu já era um corpo empoderado, que descobria sobre sexualidade, mas entendi que estava no ser mulher a minha plenitude. Talvez muitas mulheres cisgêneras não desejam ser mulheres num país como o nosso, mas pra mim fazia muito sentido. Então sou uma mulher trans, sempre tive o apoio da minha família. Nasci com muita sorte e privilégio para poder pautar o assunto nas redes sociais, por exemplo.
E quando sua experiência começa a ganhar o mundo?
Eu comecei a compartilhar minhas vivências sexuais para ter ainda mais força para continuar pautando os temas sobre sexualidade PcD e trans. Isso transformou a minha vida. Não tinha mulheres com deficiência escrevendo sobre sua própria sexualidade. Não tinha mulheres trans com deficiência escrevendo sobre sua própria sexualidade. Isso provoca muito. Com tantas agendas excludentes coladas no meu corpo, eu nado contra a corrente. Eu lembro que alguns recados que recebia na internet era “você é um monstro”, “você tem que morrer”. Com o passar do tempo eu entendi que uma das terminologias da palavra “monstro” é “aquele que mostra algo, passa uma mensagem”. Dai eu pensei “quer saber de uma coisa? Sou um monstro mesmo. Vocês vão ter que ter medo de mim. Enquanto vocês pensam se vão ter dó de mim porque sou um corpo com deficiência, estou empoderando milhares de pessoas escrevendo putaria”. Além de escrever putaria, escrevi pontos de partidas. Possibilidade de escrever a própria história.
Quando você começou a pensar sobre tudo isso, havia referências?
Não, eu não tive referências. Eu nem sabia que existiam outros corpos com deficiência LGBT. Estourei no Facebook e no Instagram acabei me consolidando. Fui garimpando meu público. Fiquei primeiro conhecida na minha cidade, Passos (MG), mas depois isso cresceu pro resto do país.
Como você fez para cuidar da sua saúde mental para lidar com os comentários preconceituosos?Começamos a discutir saúde mental ontem. Lá atrás o que me restava era ficar chateada. Antes de entender meu papel social, eu tinha que lidar com isso. Hoje um ataque hater tem muito menos efeito pra mim do que há anos atrás. Mas isso não significa que se eu tiver num dia ruim, isso não vai me atingir. Mas a rede é maior, de fato. Hoje podemos conversar, entender essas violências, legalmente falando é possível se proteger.
Como você enxerga a pauta feminista no Brasil levando em conta os seus próprios recortes transversais: sendo uma mulher com deficiência e trans?
O feminismo não me enxerga. Existe uma grande dificuldade da pauta abarcar as demandas das mulheres trans e com deficiência. Para as mulheres negras demorou mais de cem anos para que elas conseguissem invadir o feminismo. Digo invadir porque nunca foram convidadas, não foram incluídas. Estamos fazendo esse mesmo movimento. Acho que precisamos nos mobilizar, mas ainda não chegamos nesse momento de invadir o feminismo também. E tem um problema: ter um grupo de mulheres com deficiência engajado, não quer dizer que elas não sejam transfóbicas. Ainda é muito difícil que os grupos feministas entendam essas intersecções.Talvez seja uma semente que a gente precise plantão agora para colher no futuro.
Com a expansão da sua rede, você passou a encontrar pessoas com a história parecida com a sua?Para além de descobrir pessoas, com trabalhos parecidos com o meu, também tive a possibilidade de criar essas pessoas. Quando recebo uma carta dizendo “sou o que sou hoje porque descobri você”. Criar pontes com essas pessoas é maravilhoso. Hoje trato com muito mais responsabilidade, porque não estou sozinha nisso. O que escrevo hoje, influencia as pessoas. Ao mesmo tempo eu não me apego em ser a verdade absoluta sobre minha narrativa. Não tenho medo de ser atualizada. Posso pensar de um jeito hoje e descobrir amanhã que era um jeito péssimo. Então quero acompanhar.
Como você enxerga as políticas públicas para pessoa com deficiência no Brasil?
Hoje o movimento da pessoa com deficiência é tomado pela extrema direita conservadora. A esquerda não consegue pautar, nem no discurso bonito, no final de fala. E os partidos de direita usam a agenda PcD de forma assistencialista, burra e barata. Porque acham que abarcar a pauta é dar migalhas, esmola. E o movimento na grande maioria tem a memória curta. Quando o então presidente Bolsonaro assume, há aquele discurso em libras da Michele Bolsonaro, o movimento PcD aplaude isso como se fosse um grande feito. E meses depois o Conselho Nacional da Pessoa da Deficiência é extinto. Uma parcela pequena se revolta, o Bolsonaro libera uma pensão para crianças com hidrocefalia, e as coisas são esquecidas. Ainda há uma dificuldade grande de pautar porque há, na minha leitura pessoal, já que eu não represento todo movimento PcD nem de pessoas trans, falta de preparo político para entender o que realmente pode ser feito em termos de políticas públicas.
Voltando pra sua vida, gostaria de saber sua relação com o afeto e relacionamentos. Você está vivendo um romance, o que ele te traz que outros relacionamentos não trouxeram?
Estou vivendo uma experiência hoje que me tira do conforto de ser uma mulher que controla tudo o tempo todo. Por ser uma pessoa com deficiência, a gente tenta todo dia fazer o maior número de coisas possíveis sem ajuda, ser o máximo independente possível. Eu estava com meu parceiro, hospedada num espaço e numa eventual situação fui sair do banho e o chão estava molhado e não tinha tapete. Eu não uso cadeira de roda de banho e não tinha como eu sair do chuveiro sem me molhar. Eu fiquei dentro do box por um dez minutos, porque não queria pedir ajuda. Nunca pedi ajuda de um cara pra sair do banheiro. Isso me deixou tão vulnerável, abalada. Quando chamei ele, ele automaticamente pegou a toalha, me enrolou e me tirou de onde eu estava. E ai eu fiz uma longa conversa chateada com ele porque eu não queria ser a pessoa que precisa ser cuidada. E ele me falou uma coisa que faz muito sentido: “você cuida de mim de outras formas”. Esse cuidado, é um gesto como qualquer outro. Todos nós vamos viver situações em que vamos precisar dos outros, mas eu só descobri isso com 27 anos de idade. Ele tem me tirado e mostrado esse lance de uma nova perspectiva de cuidado. Eu amo profundamente.
E quais são os seus planos como ativista da temática PcD e LGBT?
Quero formar outras Leandrinhas. Quero começar a cohabitar num mundo mais igualitário, horizontal. Estou todos os dias tentando me articular. Há um desejo muito grande de trabalho, fazer com que as marcar, empresas e instituições entenda o que eu faço. Remunerar a gente, contratar a gente, chamar a gente pra pensar junto. Isso também é incluir e desenhar um projeto novo. Já trabalhei com algumas marcar, mas há muita resistência. Só somos lembradas no mês da diversidade ou da deficiência. Esperamos um avanço.