'Ódio instalado tira possibilidade de existir': casos de intolerância religiosa no Brasil aumentam mais de 80%
Denúncias foram realizadas no canal do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania; religiões de matriz africana são mais atacadas
O Brasil registrou 3.853 violações motivadas por intolerância religiosa em 2024 no canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), o Disque 100. O número corresponde a um aumento de 81% em comparação ao ano anterior, quando foram notificadas 2.128 violações em diversas localidades do País. Os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia possuem a maior recorrência nos casos.
Diante desse contexto, as religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, são os principais alvos de violência e da intolerância religiosa. Juntas, as religiões sofreram 499 violações no ano passado, distribuídas em 304 denúncias. A umbanda registrou o maior número de violações, com 234; o candomblé, com 214; e a umbanda e o candomblé, com 51. Os dados foram levantados pelo Terra no painel do Disque 100.
Conhecida pela forte atuação contra o racismo e intolerância religiosa, a ialorixá Jaciara de Oxum, do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum --que fica localizado em Salvador--, resiste e luta todos os dias pelo direito de expressar a própria fé. Ao longo dos seus 57 anos de vida, a liderança conta que mais de 25 são dedicados ao combate da violência.
“Existe um grande ódio instalado que tem tirado a nossa possibilidade de existir”
Em novembro do ano passado, a ialorixá sofreu ataques após participar de um evento em celebração ao Dia da Consciência Negra na Câmara Municipal de Salvador, no Centro Histórico da capital baiana. Vestida com suas indumentárias e guias como boa filha de Oxum --orixá associada à beleza, ao amor e poder feminino--, Jaciara foi agredida por dois vendedores que trabalhavam no local enquanto aguardava uma viagem por aplicativo. Apesar do choque, ela chegou a filmar parte da discussão e, em seguida, registrar a ocorrência na delegacia.
“Ele falou que eu era uma bruxa e que eu ia morrer. Todo mundo olhou e ninguém fez nada. Ele disse que eu ia apodrecer em um hospital, que ia para o inferno e que a mãe dele morreu de feitiçaria”, lembra, reforçando que não existe a ideia de céu e inferno no candomblé.
Essa não foi a primeira e nem a última agressão motivada por intolerância religiosa sofrida por Jaciara de Oxum. Segundo ela, a violência parece um ciclo sem fim em todo o País. Antes mesmo de conceder entrevista ao Terra, a ialorixá relata que precisou pegar um táxi ao chegar na cidade de Recife. Após entrar no veículo, o motorista ligou o rádio e colocou uma música gospel, com dizeres bíblicos.
“É uma forma muito perversa de apagar a nossa memória, a nossa história. A gente cansa de denunciar, eu fico morta de vergonha. Quando eu saí do aeroporto, peguei um táxi para o terreiro, e o cara botou uma música evangélica. Eu disse: ‘Olha, você não tem que trazer isso pra cá e pedi para tirar a música’”, desabafa.
Legado
Iniciada no candomblé aos 3 anos de idade, ela destaca que o ativismo em prol da liberdade religiosa se tornou um legado deixado por sua mãe, a ialorixá Gildásia dos Santos. Conhecida como Mãe Gilda, a liderança morreu após o agravamento dos problemas de saúde motivados pelas agressões sofridas dentro do seu próprio terreiro, que ainda foi incendiado.
Em 1999, Mãe Gilda virou alvo de difamação ao ter sua foto publicada na Folha Universal, jornal da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), junto a um texto que associava sua vivência no candomblé ao charlatanismo. No ano seguinte, ela sofreu um infarto fulminante em consequência desses acontecimentos. De acordo com Jaciara de Oxum, a mãe ficou extremamente abalada com a situação.
“Ela assinou a procuração para entrar com o processo contra a Igreja Universal no dia 20 de janeiro de 2000, e no dia 21 ela saiu e voltou dentro de um caixão. Eu assumi o terreiro, com a vulnerabilidade da morte dela, mas também para levantar uma bandeira de luta antirracista, de luta contra a intolerância religiosa”, enfatiza.
A IURD foi condenada, em 2009, a pagar indenização de R$ 145,2 mil aos filhos e ao marido de Mãe Gilda, além de publicar, em duas edições, uma retratação à ialorixá baiana. Inicialmente, a Justiça da Bahia determinou que a Igreja Universal indenizasse os familiares de Mãe Gilda em R$ 1,4 milhão, mas o valor acabou revisado pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em 2008.
Ainda de acordo com o painel do MDHC, 93 violações contra os adeptos da umbanda e do candomblé foram cometidas por suspeitos evangélicos no ano de 2024. Considerando outras religiões presentes no Brasil, os católicos e evangélicos sofreram, respectivamente, 67 e 111 violações motivadas por intolerância religiosa no mesmo período.
Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa
A morte de Mãe Gilda motivou a implantação da Lei Federal nº 11.635, que instituiu o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, em 21 de janeiro de 2007. A data é um marco para a conscientização e enfrentamento da violência no país. Para Jaciara de Oxum, o dia mantém vivo o legado de Mãe Gilda, mas carrega uma grande dor e o luto vivido há 25 anos.
“Eu não queria ser ativista de uma luta que lembra a morte da minha mãe. Eu não estou falando de Zumbi dos Palmares, de Acotirene. Estou falando da mulher que me gerou. Então, isso também me afeta psicologicamente, né? Todo ano tenho que falar de um luto que eu não posso sofrer. É um luto que virou luta”
Segundo o coordenador-geral substituto de Promoção da Liberdade Religiosa do MDHC, João Melo, o data em homenagem à história de Mãe Gilda fortalece as bases democráticas no Brasil, tendo em vista a garantia do direito fundamental a todos de professar sua religião sem nenhum tipo de discriminação.
“É importante que a gente promova a liberdade religiosa, reconheça esse direito humano, e que tem base na nossa Constituição Federal, para que todas as pessoas sejam respeitadas pelas suas crenças, tenham o direito de mudar de religião, de voltar para a sua religião, de permanecer ou de não crer, sem que sejam perseguidas”, pontua.
Entre as ações promovidas pela unidade no combate à intolerância religiosa estão a realização de eventos como “O Papel da Religião para a Promoção da Paz: Construindo Pontes e Entendimentos Mútuos", que acontecerá na próxima terça-feira, 21, e quarta-feira, 22, em Brasília (DF); e a oferta de cursos de capacitação sobre diversidade religiosa e a criação de projetos em parceria com universidades federais de diversos estados, a exemplo do “Respeite meu terreiro: Racismo religioso contra os povos tradicionais de religiões de matriz africana no Brasil”.
Quanto ao aumento do número de violações registradas em 2024, o coordenador-geral aponta que a condição tem a ver com a ampliação do acesso da população ao mecanismo de denúncia no País.
“Isso mostra também que as pessoas, os canais são mais acessíveis, estão disponíveis à população. Estamos promovendo ações para que a sociedade se encoraje e, de fato, consiga denunciar. E consiga, com isso também, mecanismos de proteção”, afirma.
Vinculado ao MDHC, o serviço de denúncias de violações de direitos humanos funciona diariamente, incluindo sábados, domingos e feriados. As ligações podem ser feitas de qualquer terminal telefônico fixo ou móvel. O canal, que é gratuito e confidencial, ainda pode ser acionado por meio do WhatsApp (61) 99611-0100; Telegram (digitar "direitoshumanosbrasil" na busca do aplicativo); site do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania para videochamada em Língua Brasileira de Sinais (Libras). Após a denúncia, a vítima pode acompanhar o caso por meio do número de protocolo.
‘Projeto que vai além do campo espiritual’
Autor dos livros Intolerância Religiosa e Coisas do Povo do Santo, o babalorixá e professor Sidnei Nogueira, avalia que a intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana no país está diretamente ligada "a um projeto político e econômico que vai além do campo espiritual".
"O avanço das religiões hegemônicas cristãs, especialmente aquelas vinculadas à teologia da prosperidade, não pode ser compreendido apenas como um movimento religioso. Trata-se de um projeto de poder que visa conquistar influência política, econômica e social, muitas vezes utilizando discursos de ódio e demonização das religiões de matriz africana como ferramenta estratégica", opina.
A partir dessa perspectiva, Nogueira traz a diferença entre os termos racismo religiosos e intolerância religiosa. Segundo o pesquisador, o componente racial é o principal fator quando se refere à violência contra as origens negras, africanas das religiões afro-diaspóricas e afro-indígenas.
"Intolerância religiosa, de maneira ampla, se refere à rejeição ou hostilidade contra qualquer crença diferente. Já o racismo religioso se configura como uma violência mais específica, direcionada às religiões de matriz africana devido à sua origem, simbologia e vínculo com a ancestralidade negra", explica.
O que diz a legislação brasileira
A liberdade de consciência e de crença no Brasil é garantida pela Constituição Federal de 1988, assim como o direito dos cultos religiosos. O inciso VI do artigo 5º ainda estabelece que "é inviolável e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias".
Já em um âmbito mais recente, a Lei (nº 14.532) prevê o aumento da pena para quem praticar intolerância religiosa e equipara os crimes de injúria racial e racismo no Brasil. Com isso, a legislação determina dois a cinco anos de prisão para quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas. A pena ainda pode ser aumentada a metade se o crime for cometido por duas ou mais pessoas, além do pagamento de multa. Anteriormente, a lei estabelecia pena de um a três anos de reclusão.
Para Nogueira, a lei representa um avanço para a comunidade, pois reconhece a gravidade da intolerância religiosa e o impacto devastador gerado na vida das vítimas que são alvo desse crime, principalmente os adeptos das religiões de matriz africana. “Ao aumentar a pena, a legislação reforça que esses atos não serão tolerados, enviando uma mensagem clara de que o Brasil está comprometido em proteger a diversidade religiosa.”
Contudo, o professor e babalorixá alerta que a lei precisa estar amparada por outras ações de implementação, fiscalização e sensibilização para garantir sua efetividade na sociedade brasileira. “Sem isso, corre-se o risco de que continue havendo impunidade, que é um dos principais combustíveis da intolerância”, diz.
Em meio ao enfrentamento do racismo religioso, o babalorixá vê a educação como um caminho para a redução da violência e conscientização da população. Ainda de acordo com ele, a implementação de políticas públicas de ver pensada não só para o ambiente escolar, mas para a divulgação de campanhas nos meios de comunicação e outros espaços públicos.
“Um dos maiores desafios é educar a sociedade sobre o racismo religioso e desconstruir estereótipos profundamente enraizados. Muitas vezes, a intolerância contra religiões de matriz africana é naturalizada por meio de discursos midiáticos, educacionais e até religiosos, que promovem a ideia de que essas práticas são demoníacas ou inferiores. O Estado precisa garantir políticas públicas que protejam os praticantes dessas religiões e promovam a pluralidade religiosa”, explica.