A perigosa agenda antitrans e sua instrumentalização por organismos de direitos humanos
As posições da relatora especial da ONU para temas de violência contra mulheres e meninas têm produzido preocupações no mundo todo
Não é novidade a organização de discursos contrários às vidas trans. Já faz muito tempo que religiões fundamentalistas, grupos políticos conservadores, uma certa psiquiatria normativa e manicomial e mais uma série de grupos vociferam raivosos diante da possibilidade de uma vida trans. Contudo, não faz muito tempo, começamos a perceber que, a medida em que avançamos em alguns direitos ainda muito básicos quando comparados com os direitos da população cisgênera (mesmo LGB), causamos incômodos mesmo em grupos que supostamente deveriam ser aliados à nossa causa ou, no mínimo, que não deveriam ser a favor de nossas mortes. Sempre me soou esquisito certo discurso que acredita que ser feminista é lutar contra pessoas trans e, inclusive, se somar aos grupos de ultra direita para que não tenhamos nem o mais básico acesso.
Alguns cargos produzem mais danos quando alinhados às agendas antitrans e, recentemente, as posições de Reem Alsalem, relatora especial da ONU para Temas de Violência contra Mulheres e Meninas, têm produzido preocupações no mundo todo. Em uma nota pública lançada em 1 de novembro de 2023, o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ aponta preocupações com a contradição de que uma pessoa que ocupa tão importante cargo na defesa dos direitos humanos passe a disseminar discursos de ódio contra pessoas trans.
Em entrevista recente, ela chega inclusive a apontar uma suposta "ideologia de gênero" (falso conceito utilizado pela extrema direita para polemizar a construção coletiva, atacar e minar direitos de mulheres em geral e populações LGBTQIA+). Em nome de uma "defesa" de mulheres, a relatora opera uma separação entre as mulheres possíveis de serem defendidas e outras que não mereceriam essa proteção. Tal perspectiva, que operou por toda a dinâmica colonial, sempre produziu, desde o norte do mundo, a noção de que somente algumas pessoas seriam humanas o suficiente para serem resguardadas por direitos humanos. Não à toa, já lá nos debates de direitos para mulheres nos Estados Unidos do século 19, Sojourner Truth, mulher negra ex-escravizada, perguntava altiva no plenário: "E eu? Eu não sou uma mulher?".
Os ideais propostos pela "defesa dos direitos da mulher" naquele contexto previam que ser mulher era sinônimo de ser branca, classe média, cristã, mãe e dona de casa. Um espectro muito estreito que protegeria um número bem pequeno de mulheres. Do mesmo modo, este fantasma segue e vemos novamente um círculo sendo traçado ao redor das "verdadeiras" humanas que merecem proteção em detrimento de outras que não cabem nesse círculo. Junto a isso, todas aquelas pessoas trans que não são mulheres também são postas como inimigas, numa dinâmica que, ao invés de produzir avanços contextualizados em suas próprias culturas e territórios visando um mundo melhor para todas as pessoas, aposta na mesma estratégia hipócrita e falaciosa dos grupos fundamentalistas, de chamar atenção e gastar energia no combate contra grupos já marginalizados ao invés de produzir mudança positiva concreta na vida das pessoas..
Numa sociedade como a nossa, é muito fácil bater em quem já está no chão, difícil é questionar de modo interseccional as grandes forças que modulam nosso presente - como o capitalismo, o colonialismo, a desumanização e coisificação de grupos marginalizados - e produzir alguma incidência de transformação apesar e através das brechas desse grande sistema (ou cistema). Nos entristece ver um cargo tão importante ser instrumentalizado desses modos falaciosos.Enquanto combatemos conservadorismos até nos órgãos de direitos humanos, seguiremos afirmando futuros trans cada vez mais possíveis. Queiram ou não queiram escritoras e mesmo relatoras da ONU, um dia seremos tão possíveis quanto qualquer pessoa cisgênera.