Amamentação travesti: indução de lactação ameaça paradigmas de gênero
Novas práticas que surgem em famílias LGBTQIA+ podem revolucionar a forma como vemos a divisão da vida doméstica
Não é exagero dizer que o reconhecimento da legitimidade do gênero de pessoas trans e travestis tem colocado boa parte da área da saúde em crise: homens engravidando, mães travestis e uma infinidade de realidades e contextos que não são novos, mas que, ao interpelarem as práticas e políticas de saúde exigindo justa atenção e reconhecimento, desestabilizam um terreno de certezas que parecia eternamente firme.
O campo da reprodução humana talvez seja uma das maiores vítimas dessa enxurrada de novas questões, inclusive, já que a própria relação de sinônimo entre os termos “mãe”, “mulher”, “gestação” e “lactação” é colocada fatalmente em xeque. Algumas crianças vieram da barriga do papai e foram amamentadas também pela mamãe – que é travesti. Sim, travesti! Os protocolos de indução de lactação são também protagonistas das polêmicas que povoam esse campo.
Induzir lactação, ou seja, induzir um corpo que não gestou a produzir leite humano para fins nutritivos de um bebê, não é algo novo. Há décadas que protocolos são desenvolvidos e aplicados com esse fim, com foco em ajudar gestantes e mães com dificuldade na produção de leite. Posteriormente, no entanto, outras realidades encontraram bom uso para isso: mães por adoção, por exemplo, além de mães por útero de substituição e em casais de mulheres cisgênero – este último, já não sem polêmicas. Segundo a fonoaudióloga e consultora de amamentação Kely Carvalho, que trabalha com o protocolo Newman-Goldfarb, ele é seguro para bebês e “a composição do leite, em termos de macronutrientes, como gordura e caloria, é muito parecida com o leita maduro de quem gesta”.
O assunto ganha outra cara, no entanto, quando a indução passa a ser realizada em mulheres trans e travestis para assegurar que essas mães (que obviamente não gestaram, já que não possuem útero) possam também amamentar seus bebês.
Aí, para alguns, já foi longe demais...
Entre as queixas mais frequentes (se ignorarmos as explicitamente transfóbicas), a preocupação de que hormônios e remédios pudessem passar para o leite, ou de que o leite teria menos qualidade nutritiva, já que não seria “natural”. Ainda que consultoras e especialistas tivessem pronto o contra-argumento com a aparentemente bombástica revelação de que corpos ditos masculinos também têm glândulas mamárias (pasmem!). Uma publicação recente trouxe mais informações sobre o tema. Publicado este ano no Journal of Human Lactation, da International Lactation Consultant Association (Associação Internacional de Consultoria de Lactação), um estudo de caso realizado pela pesquisadora Amy K. Weimer conclui que mulheres trans, travestis e pessoas não-binárias que não gestaram e induziram a lactação podem estar seguras de que o conteúdo do leite é similar ao do leite produzido por pessoas gestantes sem indução.
O impacto disso é gigantesco e extrapola as necessidades e demandas de pessoas trans e travestis. Vou repetir: sim, corpos de mulheres trans e travestis, ditos “do sexo masculino”, podem induzir a lactação e há indícios de que a qualidade do leite é similar ao produzido pela pessoa gestante sem indução. Compartilhar a amamentação, ou seja, dividir também esse trabalho de cuidado entre mais de uma pessoa cuidadora da criança, prática que já não é rara entre casais de mulheres cis e entre casais com pessoas trans, pode vir a ser uma realidade também para casais com homens cisgênero.
Ainda não é possível que a indução seja realizada em homens cis, já que não há respaldo, atualmente, para o bloqueio de testosterona que seria necessário para a indução. Ainda assim, esse avanço é um passo importante rumo a uma perspectiva sobre divisão do trabalho doméstico que alcance também esta dimensão dos trabalhos de cuidado.
E olha que travestis amamentando já era ir longe demais!
Não há botão de “desfazer” avanços tecnológicos. Há apenas o tempo de adaptação necessário para que nossos hábitos, práticas e valores sejam atravessados por suas mudanças.
Vale cuidar, portanto, para que a complexidade dos desafios do hoje não nos tire de vista a potência e as possibilidades do que temos lá na frente: novas perguntas também implicam em novas pesquisas, novos avanços, novas e melhores respostas e, disso, toda a sociedade se beneficia.