Julho é mês das pretas, e não da cisgeneridade
Identidade de gênero, sexualidade e racismo andam juntos no projeto colonial de desigualdade social
Caro e gentil leitor!
Essa primeira frase não é um tendencioso plágio, apenas a rememoração da série Rainha Charlotte, que muito se popularizou aqui na minha província. Sim, a minha simples e potente província no nordeste brasileiro chamada Bahia.
Vou começar essa escrita de forma leve, mas com pitadas sutis de ironia. O deboche é de bom tom, mas não dará embalo a essa escrita. Devo confessar que, para dar início a uma coletânea de narrativas que nos remete a moldes coloniais que nos amordaçam e nos tornam refém diariamente da sua impureza, um tom sarcástico é a melodia suave que ameniza nossa dor.
Antes de abordar alguns conceitos teóricos que embasam essa escrita, é salutar compreender e afirmar o quanto o colonialismo e sua matriz de opressão social contribuem para determinar e fixar a opressão social, que é muito calorosa aqui na Bahia, bem como a subordinação do racismo e da cis-heteronormatividade, dentre outros fatores de exclusão social. Como nos diz a autora Grada Kilomba, "o racismo é uma realidade violenta".
Devo pontuar que ter atenção é algo que não precisa ser de forma discreta e, sim, cautelosa, principalmente para a compreensão de como essas dinâmicas nos afetam diariamente, pois, como já citado aqui, os eixos de subordinação social têm seu pé de fundamentação original na matriz de opressão da branquitude eurocêntrica colonial. Desde que o Brasil é Brasil, o Império da branquitude rege e mente as matrizes de opressão social. Dito isso, sigo firme nas minhas palavras e, como prometido, serei sutil e sucinta para ratificar alguns eixos que sustentam e fundamentam não só a minha narrativa aqui escrita, mas outras narrativas que vão na contramão dessa determinação brancocêntrica.
Um 'salve' ao feminismo negro e aos movimentos de mulheres negras, que dentro de suas entranhas diversas e plurais, me trouxeram aqui, pois é daí que temos o entendimento das mulheridades possíveis que culminam com a grande frase: "E EU NÃO SOU UMA MULHER?" .
Ainda que diante de críticas que possivelmente eu possa tecer sobre as práticas de algumas lideranças do movimento de mulheres negras, a coerência aqui é uma virtude e assertiva para transgredir as amarras de um feminismo único, branco, racista e universalista.
Até mesmo porque o movimento de mulheres negras não nasce com essa perspectiva onde cada uma só olha para o seu metro quadrado luxuoso, pois é a força e a pretitude de mulheres negras que nos levam a ter consciência crítica sob a matriz de opressão colonial, uma vez que esse espaço nos diz de forma legítima que a branquitude não nos representa. É a partir dessa análise e desse dado local social que devo te lembrar que estamos no mês de julho, que é destinado às mulheres negras e latino-americanas e caribenhas.
Mas cisgeneridade é fator imperativo? Devo acreditar que nas entranhas do movimento de mulheres negras esse fator não deva ser levado em consideração, pois é no embrião germinador de mulheres negras que a visão essencialista é rompida, logo esse fator imperativo nas entranhas negras deva/deveria ser uma falácia, afinal corpos negros não eram lidos como corpos de mulheres. Negro não tinha alma!
Também é preciso ratificar dentro desse lugar o quanto o feminismo e o movimento de mulheres negras se elaboram como movimentos políticos e globais que tensionam e confrontam o sistema racista, o cis-heteropatriarcado, bem como o sexismo, machismo e o androcentrismo, dentre outros privilégios dados ao domínio social colonial branco, que possui e ditas regras sociais favorecendo assim as dinâmicas sociais. Aqui apontamos a identidade de gênero, bem como a sexualidade, como eixos dessa dominação, se tornando assim produtoras de desigualdades sociais.
De forma bem objetiva apresento as travestilidades e transexualidades nessa ciranda através da memória da autora Lélia Gonzalez que, com seu posicionamento contundente, apontou e trouxe caminhos imprescindíveis para a valorização das mulheridades negras, pois como sublinhava a autora o fato de sermos mulheres não nos coloca no mesmo lugar de opressão, pois somos mulheres das mais diferentes entre si.
Da mesma forma, é importante ver, sentir e perceber esse lugar diferente nas dinâmicas sociais, bem como na opressão, que leva o Brasil ao topo de locais mais violentos contra mulheres trans, na sua maioria negras. Logo segregar mulheres trans e negras da luta contra o patriarcado, até mesmo porque o racismo é o eixo central das desigualdades sociais, e não legitimar mulheres trans, principalmente as negras, na luta pela vida e pelo direito de existir, remete a não ser um princípio de luta antirracista decolonial.
O caro e gentil leitor deve se perguntar porque cito movimento de mulheres negras e feminismo negro. É para demarcar sua ideia inicial cujo princípio está atrelada a ideia das diferenças que compõem as nossas subjetividades elencadas ao nosso sentido coletivo, cujo princípio vital é o confronto ao modelo existencial branco racista patriarcal colonial, o que agrega ou deveria agregar para o fortalecimento do movimento de mulheres TRANS, mas deve lembrar que, como a prática social branca é a ideal de alguns discursos, as falas propriamente se tornam falácias e as práticas, por sua vez, se tornam aliadas ao discurso da hegemonia branca.
Que seja possível ocupar e assim enegrecer, lesbianizar bem como travestilizar não só o feminismo, mas a intensidade do movimento de mulheridade possível, e construir possibilidades existenciais mútuas em nossas agendas de luta contra o modelo colonial em vigor.
Sendo assim, aprendemos dentro do embrião feminino negro que o ser mulher é tão diverso e diferente e, assim como nosso compromisso de luta antiracista, antimachista e antilesbitransfóbica, segue a luta contra o trabalho análogo a escravidão, direito a creche, à moradia e segurança alimentar, dentre outros que incidem com veemência na vida de mulheres negras.
A pauta de mulheres negras está acima da sua transfobia. Que esse recado proceda com grande eco na minha província no subjetivo branco de algumas mulheres negras.