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Existe democracia que permite controle de corpos?

Derrubada dessa decisão, longe de ser algo pró-vida é, de fato, a ação explícita de um grande backlash anti-feminista, classista e racista

24 jun 2022 - 17h00
(atualizado às 19h26)
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Após quase 50 anos, Estados vão poder legislar do jeito que quiserem sobre o procedimento
Após quase 50 anos, Estados vão poder legislar do jeito que quiserem sobre o procedimento
Foto: Reuters

"Em 1.800, o aborto era legalizado em todos os estados e a opinião popular a respeito era em geral neutra. Só em meados do século XIX, com o surgimento dos grupos de defesa dos direitos da mulher, foi que o aborto se transformou num campo de batalha. Quando as mulheres pressionaram exigindo medidas de planejamento familiar tão simples quanto "maternidade voluntária" - que propunha a liberdade das mulheres para recusar o sexo ocasionalmente por motivos de saúde -, os médicos, os legisladores, os jornalistas e os clérigos responderam com uma campanha muito mais radical contra qualquer tipo de controle da natalidade".

Susan Faludi em Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres.

E não é que no dia de hoje a Suprema Corte dos Estados Unidos cumpriu com a ameaça que discretamente já proferia há tempos e suspendeu, de modo inconstitucional, o direito ao aborto nos casos previstos em lei?

O direito ao aborto legal foi uma conquista que se deu a partir de uma decisão histórica em um processo jurídico que ficou conhecido como “Caso Roe contra Wade" no começo na virada da década de 60 para a década de 70. Mas afinal o que foi esse caso?

Bom, 1973 “Jane Roe”, pseudônimo usado nos documentos do processo por uma jovem de 21 anos chamada Norma McCorvey, estava grávida do que seria seu terceiro filho, sem a participação dos homens pais de suas crianças e com sérias dificuldades para garantir o básico para sustentação da vida, já que por ter baixíssima escolaridade suas chances de um bom emprego eram praticamente nulas. Em desespero e se sentindo sozinha, declarou que não poderia levar aquela gravidez adiante pois, não tinha condições materiais e nem psicológicas para arcar com mais um filho sozinha. 

Recorreu ao aborto e teve seu pedido negado, uma vez que, no Texas, sua terra natal, a interrupção de gravidezes só era permitida em caso de estupro ou de risco de vida para a mãe e/ou a criança.

Foi então que ela obteve amparo lega das advogadas Linda Coffee e Sarah Weddington para entrar com processo contra o promotor do condado de Dallas, Henry Wade, pedindo a anulação da lei do aborto daquele estado. O processo foi longo e exaustivo, iniciando-se em 1969 e se arrastando até 1973 quando a sentença final favorável foi dada.

Um verdadeiro marco histórico, a despeito da divisão de posicionamentos que se deu na sociedade norte-americana que perdura até hoje, onde uma parte da população se diz pró-vida e a outra pró escolha. 

Acontece que ainda que essas pessoas defendam o direito à vida, o que é perfeitamente compreensível e louvável, sobretudo do ponto de vista moral, algumas questões colocam em xeque as reais intenções dessa devesa mais que oportuna.

Primeiro, é sobre a insistente e autoritária imposição dos seus respectivos pontos de vista sobre algo que não está em sua “jurisdição”, a vida alheia. Quem defende a vida deveria, acima de tudo, defender o livre direito a escolha do próprio destino, do próprio corpo.

Segundo, será que se juntássemos todas os desejos dessas pessoas para colocá-los em prática, teríamos a extinção das desigualdades sociais que são, sem sombra de dúvida, a maior causadora da necessidade de se fazer interrupções de gravidezes? Sim, porque as causas mais comuns e repetidas manifestadas pelas mulheres que tem uma gravidez indesejada são de ordem econômica, vide o próprio caso da Norma McCorvey, que gerou o marco histórico nos EUA. Ser a favor da vida é também e principalmente trabalhar ativamente pelos direitos básicos que faltam a tantas mulheres, como alimentação, moradia, trabalho e renda, saúde e educação. Porque essas pessoas jamais estão na linha de frente dessas lutas com esse mesmo argumento: a favor da vida?

Terceiro ponto é quanto à questão racial e de gênero, obviamente dois pilares dessa discussão. 

De acordo com relatórios divulgados por alguns veículos de comunicação, os juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos votaram, de maneira reservada, para derrubar a decisão da década de 1970, em pleno 2022 pós Donald Trump e George Floyd. Aqui cabe duas perguntas: porque o sigilo diante de algo que é de interesse público e porque a Suprema Corte, desde que foi estabelecida em 1789, só teve 108 juízes que não foram ou são homens brancos do total de 114 que já serviram ao tribunal.

A derrubada dessa decisão, longe de ser algo pró-vida é, de fato, a ação explícita de um grande backlash anti-feminista, classista e racista. Grupos que sofrem as ações da opressão de raça, classe e gênero tem como principal fragilidade a ausência quase que total de autonomia de seus próprios corpos, sendo pautados ao longo da história por decisões que não tomam e que sequer estão presentes quando elas são tomadas. Será que ser pró-vida não inclui lutar pela garantia de que toda e qualquer ação que incide diretamente na autonomia das pessoas seja tomada única e exclusivamente na presença dos envolvidos diretamente na questão? 

Tudo, absolutamente tudo que se faz as escondidas é no mínimo duvidoso e, nesse caso mal intencionado. É preciso perguntar aos “pró-vidas” porque em geral, eles se incomodam quando é dito que “vidas negras importam”? 

Mas para a massa popular que está diretamente sob ação desastrosa e tendenciosa das masculinidades autoritárias e impositivas, especialmente nós mulheres, negritude, LGBTQIA+, pobres, idosos e etc.., é imperativo e vital entender o que estamos falando quando afirmamos que os sistemas de opressão e dominação são estruturais e estruturantes da sociedade. Digo isto porque é óbvio que o debate feminista se perdeu na lacração e no apelo do mercado. O backlash ou contra-ataque, tão bem fundamentado pela jornalista Susan Faludi nos anos 80 em seu livro clássico, está vencendo folgadamente e nos jogando em um mar de retrocessos. 

Li ainda a pouco o texto comovente da linda e poderosa Michalle Obama, ex-primeira dama dos EUA, lamentando a decisão, assim como outras personalidades que sim, amamos e admiramos e, em um passado não tão distante, vibramos com suas vozes aderindo ao feminismo. Mas infelizmente, essas vozes não romperam com pactos fundamentais que sustentam o sistema e fortaleceram pouco ou nada a massa de mulheres que, diferentemente delas, não tem a (frágil) proteção da classe social para se salvar. É preciso entender que todas nós mulheres, do mundo todo, estamos sob ataque escancarado, e isso é resultado de alguns avanços que a luta histórica nos proporcionou. O soco foi dado e trepidou levemente algumas estruturas. Mas elas são fortes o bastante para se levantar e até usar nossas bandeiras contra nós mesmas, dizendo em tom de deboche: “Ainda assim eu me levanto.”

Fonte: Redação Nós
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