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"A Mulher Rei" toca em feridas que ninguém está disposto a admitir

Só a arte para nos fazer suportar o peso de um passado que ainda não passou, não é mesmo?

22 set 2022 - 05h00
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"A Mulher Rei" estreia nesta quinta-feira (22) nos cinemas brasileiros.
"A Mulher Rei" estreia nesta quinta-feira (22) nos cinemas brasileiros.
Foto: Divulgação/Sony

A história da escravidão contada pela ótica do escravizador é ótima. Mas completamente irreal. Parece que isso é óbvio em pleno século 21. Mas não. Ainda é forte a narrativa branca europeia, romantizada e mentirosa, que inseriu no senso comum das nações colonizadas uma imagem heroica do poço de debilidades humanas que é o homem branco.

A verdadeira história ainda não é de domínio público por um motivo muito forte: ela é horrível, cruel e sanguinária. E o pior de tudo é que está mais viva do que nunca.

Mas como romper com a alienação e permitir que a negritude saiba integralmente e sem nenhum tipo de fantasias ou manipulações sobre a sua própria história?

O cinema é um bom caminho, porque move os imaginários e atua diretamente no inconsciente coletivo, mesmo quando mesclado a ficção, afinal, só a arte para nos fazer suportar o peso de um passado que ainda não passou, não é mesmo?

Só que nesse sentido, o de usar a arte como lenitivo para as dores históricas, o novo filme de Viola Davis, inevitavelmente, falhou.

Porque não há competência artística que dê conta de aliviar os séculos de sofrimento e exploração da existência negra. Tampouco existem recursos cinematográficos avançados o bastante que possam suavizar o ódio e desprezo que o mundo ainda direciona para nós, mulheres negras.

Mas ainda assim o filme é necessário. E traz a coragem que só os negros norte-americanos conseguem ter ao abordar as dores históricas. Na verdade, essa foi a carta na manga que os salvou em algum nível, a consciência racial fundamental na formação do orgulho preto. E isso implica na autocrítica e no reconhecimento do hospedeiro do opressor que há em nós.

Com essa coragem “A Mulher Rei” (The Woman King) toca em feridas que, principalmente no Brasil, ninguém está disposto a sequer admitir que elas existem.

Duvida?

Então vejamos:

Temos rodas de conversa sobre masculinidade negra com todo tipo de lamentações, mas nenhuma delas discute, por exemplo, o machismo do homem negro e suas manifestações que se voltam contra eles mesmos. O filme coloca isso em discussão.

Colorismo?

Assunto tabu absoluto, ainda! Quem quer discutir o que é ser pardo (light skin/bi-racial/mixed) e as vantagens contidas nessa condição racial? O Brasil não, mas o filme, sim.

E vamos falar sobre o quanto a ganância e a soberba do colonizador impregnou na alma de boa parte dos colonizados e destruiu as relações intrarraciais da negritude? Vamos falar de negros que venderam outros negros (os nossos) porque sucumbiram a sedução do dinheiro e da ambição desmedida? Vamos falar do auto-ódio que impede a negritude de viver, de fato, o real significado de coletividade e ancestralidade? O Brasil não quer, já o filme não foge do tema. A rivalidade entre a negritude existe e é a principal força contrária da luta contra o racismo, pelo menos no Brasil.

Por aqui o comportamento do colonizador está impregnado na alma negra. Sergio Camargo e Fernando Holiday é apenas a ponta de um iceberg que Paulo Freire descreveu muito bem no conceito de subpressão. Talvez por isso o Brasil seja um dos focos da publicidade desse filme. Será?

O fato é que o Reino Africano de Dahomey existiu e é pano de fundo para o satisfatório roteiro de Dana Stevens, que dá o passe perfeito para a competente direção de Gina Prince-Bythewood (The Old Guard).

As guerreiras Agojie (ou Ahosi) também conhecidas como “Amazonas do Daomé” compunham o exército feminino de defesa do Reino do Daomé, onde hoje fica o Benin, sendo as mulheres mais temidas em todo o continente Africano. Não é a primeira vez que elas são referenciadas no cinema. O clássico da Marvel, Pantera Negra, é a adaptação mais atual do exército de mulheres guerreiras que chegaram a um contingente de cerca de 6000 guerreiras (mais ou menos um terço de todo o exército do Daomé), que combateram arduamente a perversidade de homens europeus e africanos para proteger o reino e libertar cativos a serem vendidos no esquema da escravidão.

Vai ser difícil para o feminismo das mulheres brancas que equivocadamente pleiteiam por uma igualdade em detrimento da equidade, compreender a complexidade das relações entre homens e mulheres que o filme sugere e que está muito mais pautada no respeito e no reconhecimento das forças opostas do que na competição entre sexo frágil e macho alfa.

Não é novidade ver Viola Davis brilhando nas telas da sétima arte. Como a guerreira Nanisca, líder das Agojie, não foi diferente. Sustentar as emoções só com o olhar não é coisa de atriz mediana. É coisa de gigante. E todos sabemos que Davis é gigante, dentro e fora das grandes telas. 

Mas sempre há espaço para outros gigantes e aí que a grandiosidade de Viola se confirma. Grande é quem consegue confiar tanto em si que não teme ou menospreza a força do outro. Ou da outra no caso. Daí temos o elemento surpresa que ficou por conta das atuações impecáveis de Lashana Lynch (perfeita como a Izogie), Sheila Atim como Amenza e, a Thuso Mbedu como a linda e destemida Nawi. A maior beleza do filme é a reafirmação de que o amor fraternal fortalece e que quando verdadeiramente juntos, somos realmente mais fortes.

O filme é um importante resgate histórico pelas mãos de quem tem propriedade para tal. E merece ser visto e discutido nas nuances mais óbvias e nas mais complexas que o roteiro sugere. É um bom antídoto contra a manifestação da “identidade vitimada” trazida pela sempre presente bell hooks, porque evoca a força da mulher negra. Mas convenhamos, é hora de nos darmos o direito de aposentar as armas e deixar o mundo entender que nossa força está também na doçura e na capacidade de amar e ser amada. É hora de buscar novos caminhos e criar condições para receber a nutrição emocional que o mundo continua nos negando. Esse direito de apenas existir na mais genuína simplicidade humana, longe da aura da heroína salvadora ou da provedora mãe negra, aquela que só é importante enquanto satisfaz as necessidades alheias.

Também é perigoso as narrativas que reforçam a negação da nossa sensualidade como estratégia de se esquivar da objetificação dos nossos corpos. Nosso poder está na manifestação do erótico que há em nós, como bem disse Audre Lorde.

Não podemos aceitar como sina o que o mundo racista e machista nos nega. Se não nos colocarmos nesse lugar, estaremos para sempre na dianteira das lutas, mais quem cuida de quem sempre foi obrigada a cuidar?

Fonte: Redação Nós
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