Aborto: uma liberdade que termina onde outra começa
Discussão sobre o aborto não é uma questão moral e muito menos sobre liberdade de expressão
Como mãe de quatro pessoas, um rapaz e três moças, me sinto muito a vontade em dizer que sou irreversivelmente contra o aborto. Mas é uma opinião e decisão minha, sobre meu corpo e as regras que tracei para a minha vida. Também é sobre minha contribuição para a sociedade em que vivo. Ser mãe, para além de tantas importâncias, é uma função política, no sentido mais amplo, e que não se limita a questões partidárias. Política é toda e qualquer decisão conjunta e coletiva sobre questões de interesse e organização da sociedade em que vivemos. Não dirigir após beber, por exemplo, é uma decisão política, uma vez que impacta diretamente na vida de tantas pessoas, caso ocorra algum acidente com desfecho fatal. Impedir uma mulher de decidir o que faz com o próprio corpo é igualmente uma questão política. No caso, autoritária, invasiva, inapropriada. E hipócrita porque se a sociedade se importasse tanto com as crianças e adolescentes, não teríamos cerca de 5,5 milhões de brasileiros sem nome do pai na certidão de nascimento. Se os valores familiares fossem levados a sério, como dizem, não teríamos cerca de 11,6 milhões de famílias formadas por mães sozinhas.
E o que dizer sobre o aumento expressivo do suicídio entre crianças e adolescentes, que denunciam nossa total falta de interesse sobre esse período tão vulnerável de nossas vidas?
Quando eu decido que aborto não fará parte da minha história de vida, estou dentro do meu direito como cidadã, afinal, a gravidez é minha e essa decisão, no máximo, envolve as duas pessoas que copularam.
Quando eu exponho minha opinião de que nenhuma mulher no mundo deve fazer aborto, eu também estou dentro do meu direito, afinal, todos têm opinião e a liberdade de expressá-las, desde que não seja discurso de ódio enrustido, é assegurada por lei.
Mas, quando eu acredito que minha opinião pode ou deve incidir na vida e decisões de outros sobre suas próprias vidas, isso ultrapassa todo e qualquer limite moral da convivência social.
Quando eu decido que minha vizinha, minha filha, minha mãe ou as mulheres do mundo todo não podem fazer um aborto porque EU acho inadequado, eu estou saindo completamente do meu direito e invadindo o direito de outra pessoa, impondo a ela minhas convicções e crenças, deliberando sobre um corpo que não é meu e sobre uma vida que eu não pretendo cuidar.
Muitos usam o argumento de que há prevenção para uma gravidez indesejada. E é verdade, até certo ponto. É uma informação incompleta. Temos atualmente diversos métodos contraceptivos, seguros e devidamente testados e aprovados pelas autoridades que regulamentam questões de saúde pública. Mas esses métodos não são totalmente acessíveis para muitas e, mesmo quando é acessível, a informação compromete o uso e a eficiência.
E aqui chegamos em outro argumento corriqueiro: “então não faça sexo!”. E reparem que essa “recomendação” só é dada às mulheres. Curiosamente, o mundo lida muito mal e porcamente com o prazer feminino. Ainda é um tabu. E sobretudo, é um argumento no mínimo leviano.
O bem-estar mental e físico passa também por uma vida sexual prazerosa. Ou seja, sexo importa. Mas é fato que nossa vida sexual implica em obrigações e responsabilidades.
Mas ter uma vida sexual sem risco de uma gravidez indesejada envolve muito mais questões do que controle rigoroso entre horários e administração de anticoncepcionais. Isso só para aprofundar esse assunto com o mínimo de coerência. Envolve questões sociais. Uma delas é a educação sexual nas escolas. Outra é o status da saúde pública na sociedade. Quanto tempo leva para ser atendida por um ginecologista em um posto de saúde nos bairros mais pobres de São Paulo? E poderíamos citar pelo menos umas cem questões sobre saúde pública precária que não oferecem suporte para o planejamento familiar adequado e eficiente.
O fato é que todas essas questões fazem da nossa vivência sexual uma verdadeira via crucis. O resultado: quase metade de todas as gestações no mundo (48%) são involuntárias, segundo um estudo publicado em 30/03/2022 pelo Fundo de População da ONU (UNFPA), em Nova York. Cerca de 6% de todas as mulheres do mundo passam por uma gravidez indesejada anualmente, o que dá um total de 121 milhões de gravidezes indesejadas. Desse montante, mais de 60% são interrompidas, sendo que metade delas em condições inseguras, de acordo com a pesquisa.
As principais causas de gravidezes indesejadas são discriminação contra as mulheres, pobreza, violência sexual e falta de acesso a contraceptivos e aborto. E não é necessário uma mentalidade privilegiada para ligar ‘lé com cré’ e concluir que isso impacta, obviamente, toda a sociedade, especialmente em áreas estruturais como educação, emprego e renda, saúde, planejamento urbano e segurança pública. E aprofunda os índices de pobreza e desenvolvimento humano. Impactando famílias inteiras por gerações.
Cerca de 74 milhões de mulheres vivendo em países de renda baixa e média engravidaram sem intenção. O quadro causou 25 milhões de abortos em condições inseguras e 47 mil mortes maternas.
E vamos falar aqui sobre saúde mental? Os impactos psicológicos nas mulheres que descobrem uma gravidez indesejada são imensos. Muitas vão ao desespero, especialmente as mais pobres, que, grosso modo, também são pretas e pardas. E reparem como as mesmas pessoas que acreditam que o aborto deve ser criminalizado não discute abandono parental ou violência doméstica contra crianças e adolescentes. Lembrando que abandonar um filho também acontece com pais casados. Homens ainda se negam a cumprir a obrigação de cuidarem de seus filhos com o mesmo empenho e dedicação que as mulheres o fazem. Sintomático, não?
Por todas essas questões e muitas outras que não cabem em um único texto, a discussão sobre o aborto não é uma questão moral e muito menos sobre liberdade de expressão. É uma discussão sobre autonomia e responsabilidade social. Em 46 anos de vida eu jamais soube de pessoas assumindo cuidados e responsabilidades sobre as vidas que dizem querer preservar. Haja vista a quantidade de crianças abandonadas, estupradas, passando fome, sendo violentadas. Os números confrontam toda e qualquer demagogia em torno do assunto. E não por acaso, mais da maioria dessas crianças são negras, e aqui entramos em outro ponto da questão: a herança colonial racista nas entrelinhas da criminalização. No período colonial, a pessoa negra era moeda, era investimento e mão-de-obra. Por isso, abortar era impedir a consolidação do investimento. Infelizmente, os ecos do período colonial ainda reverberam e foram ressignificados. O corpo negro serve não mais apenas para investimento em mão-de-obra. Serve também para a branquitude extravazar seu ranço racista em forma de genocídio.
Todas as pessoas deve ser contra o aborto e manifestar isso seguindo à risca um ditado africano que diz: “é preciso uma aldeia inteira para cuidar de uma criança”.
Podemos melhorar as condições atuais da sociedade ou transformá-la em um espaço mais justo e equilibrado, onde ter crianças, filhos e filhas, não seja um susto, um medo ou uma obrigação e sim um exercício amplo e irrestrito de amor fraternal.
Podemos direcionar nossas contestações e anseios por preservação da vida, lutando por educação, alimentação, habitação, saúde e lazer adequada para todas e todos. Isso é básico para o bem viver de qualquer ser humano em qualquer idade.
Podemos inclusive continuarmos sendo contra o aborto, mantendo nossas crenças e convicções intactas, nos privando de fazê-lo.
O que não podemos é continuar compactuando com a morte, física e/ou simbólica de mulheres que são impedidas de decidirem sobre os seus próprios corpos, simplesmente porque estamos apegados a nossa vaidade que eleva opinião própria a status de leis que criminalizam corpos que não tem nenhuma obrigação de nos obedecer.
Aborto descriminalizado não é aborto liberado, é exercício do livre arbítrio da mulher sobre seu corpo.