Afinal, "Pobres Criaturas" é um filme feminista?
Filme traz grandes reflexões sobre feminismo, mas ainda assim é preciso analisar outros aspectos da obra que interferem nessa classificação
Embora o roteiro e o próprio realizador, timidamente, reinvindiquem o filme como uma película feminista, criando situações e cenários que corroborem essa intenção, a dúvida diante da necessidade de definição sobre a narrativa de "Pobres Criaturas", um dos filmes mais aclamados entre os indicados ao Oscar 2024, como tal diz mais sobre nossa encruzilhada sócio-existencial em um mundo cada vez mais opressor do que exatamente sobre a obra do festejado diretor grego Yorgos Lanthimos.
Isso porque a ascensão midiática dos debates sobre feminismo tem influenciado negativamente toda uma geração que chega agora nessa arena, se valendo da negligência com estudos e reflexões coletivas sobre a condição das mulheres e da imposição de uma narrativa caricata e pouco disposta a questionar seus privilégios, raciais e sociais, e que, apesar de sofrer as agruras do machismo, estão muito longe das práticas mais profundas do machismo vivido por quem está - e sempre esteve - na base da pirâmide social.
Infelizmente, o resultado desse esvaziamento é a ineficiência na proposição de ações transformadoras que detenham o aumento das estatísticas do feminicídio, dos abusos e violências de toda espécie e qualquer vivência que incorpore ou expresse o gênero feminino.
Estamos em um período de debates tão rasos, colonizados e monopolizados, com auxílio da mídia e dos interesses políticos dos reais identitários, que o que paralisa as discussões são reivindicações que, sorrateiramente, reafirmam a hierarquia entre corpos padrões e corpos realmente excluídos e desumanizados.
Como é o caso das mulheres da mídia, atrizes e modelos, devidamente esculpidas e performadoras dos padrões euro-patriarcais e falocêntricos, que passaram muito tempo alienadas de sua condição de oprimidas, vendendo todos os pseudofacilitadores para aceitação das masculinidades hegemônicas, desde cremes e lingeries “empoderadoras” até tratamentos estéticos e cirurgias plásticas. E, agora, se veem como vítimas das narrativas que ajudaram a consolidar.
Diante desses sofrimentos vaidosos que choram pelas críticas masculinas (e feminina em muitos casos, já que mulheres também reproduzem práticas machistas), podemos concluir que o feminismo liberal, de mercado ou de prateleira, não tem trabalhado para fortalecer ninguém e tampouco por uma transformação social. Ao contrário, reafirma o enfraquecimento psíquico expresso pelas queixas vendidas na mídia, como sua carta na manga para continuar recebendo as migalhas do patriarcado.
Esse é o sinal de que a padronização, como elemento que sustenta hierarquias sociais, não só está atuante como cumpre um papel de distrair do que realmente importa, a emancipação feminina em todos os pilares do "eu-social": político, cognitivo, econômico e psíquico.
Traduzindo aos desatentos, o que quero dizer é que não adianta chorar quando a celulite ou as rugas são criticadas enquanto mulheres racializadas continuam sendo consideradas não humanas, macacas descartadas silenciosamente. O machismo é respaldado pelo racismo e vice-versa e ambos são ancorados na hierarquia de classes sociais.
Pois bem, nesse sentido, não é muito difícil entender por que surge uma questão como essa sobre um filme dirigido por um homem, que, apesar de espetacular, não seria tão aclamado se fosse dirigido por uma mulher. É um grande privilégio masculino um filme sugerir que é feminista e não enfrentar a rejeição ferrenha que "The Marvels" e até mesmo "Barbie" enfrentaram.
Segundo o roteirista Tony McNamara, a inspiração para a criação da saga de Bella Baxter passa por obras com fortes lastros do pensamento feminista, já que roteiro e direção partem de uma referência do romance homônimo de Alasdair Gray publicado em 1992 e que é uma releitura importante de "Frankenstein", da escritora britânica Mary Shelley, filha de uma das pioneiras do feminismo europeu, a também escritora Mary Wollstonecraft, autora do essencial “A Reivindicação dos Direitos da Mulher”.
Mas aí existe um problema: as discussões liberais e reducionistas do feminismo de mídia confundiram muitas mulheres, que hoje emprestam sua voz e imagem para se alçarem como representantes de uma luta coletiva, mas enxergam toda e qualquer pauta por uma perspectiva individualista e pautada por suas liberdades individuais privilegiadas. Isso exclui um componente importante: o comportamento humano e suas incongruências.
Isso jamais poderia ficar de fora dos debates sobre as opressões que estruturam nossa sociedade, mas estão, seja por oportunismo ou inocência. Antes de feminista, de antirracista, de anticapitalista ou de qualquer outro ‘anti’ combativo, somos pessoas, com potências e debilidades a serem exploradas e compreendidas. E essas complexidades silenciadas servem para impedir todo e qualquer avanço. Sendo assim, elas não poderiam ser reivindicadas por um filme, do contrário não atrairiam tanto interesse.
E é justamente isso que "Pobres Criaturas" traz, um enredo para pensarmos em quem seríamos se pudéssemos rebobinar nossa existência por inteiro, nos despindo das bobagens impostas por uma sociedade do espetáculo, muito hábil em criar regras e ilusões de superioridade, mas pouco empática com o desamparo e a fragilidade da vivência humana. Tudo isso pulverizado pelas discussões mais rasas do feminismo liberal.
Nessa perspectiva, é inevitável situar os papéis de gênero de maneira mais acentuada no filme, já que são vieses que sustentam os problemas das relações em sociedade. Isso passa por uma crítica criteriosa da masculinidade impositiva e autoritária que se expressa muito bem na brilhante interpretação de Mark Ruffalo para o canastrão Duncan Wedderburn.
O próprio Lanthimos admitiu em entrevista para o jornal britânico The Guardian que foi libertador usar esse personagem para expor que, sim, isso é a masculinidade que molda e comanda o mundo.
Mas nós mulheres não somos Bella Baxter, não nos apoderamos sem medo de nossa existência e não vivenciamos nossa liberdade de ser e estar em desacordo com as regras da sociedade. Ao contrário, nosso lado humano nos puxa para baixo através da vaidade que faz com que mulheres se deixem abater pela reprovação dessas masculinidades perdidas e caricatas representada por Duncan Wedderburn.
Uma das cenas mais emblemáticas é a da dança, onde os movimentos dos corpos sugerem claramente uma luta onde de um lado Duncan Weddeburn faz movimentos para reter os movimentos destoantes de Bella e esta, por sua vez, resiste e se livra do seu domínio, ora conduzindo os movimentos dele, ora se movimentando no ritmo e na coreografia própria. Assim, Bella manifesta de forma lúdica o real significado de “meu corpo, minhas regras”.
Mas ainda que a caracterização de Bella seja uma ode à independência feminina, o que dá margem para se enquadrar em uma narrativa feminista, a infantilização é incômoda, sobretudo por ser ditada por um homem, o cientista Dr. Godwin Baxter, encarnado pelo competente Willem Dafoe. É questionável do ponto de vista de uma narrativa feminista que um homem recrie uma mulher como bem entende, passando por cima inclusive de sua vontade de não viver mais.
Também é incômoda a abordagem nada empática da prostituição, sobretudo quando apresentada como única opção para emancipação, ainda que o roteiro esteja sugerindo um tempo passado, mais precisamente a década de 1930.
A sexualidade em si também merece certa desconfiança, ainda que seja muito oportuno traçar a vivência sexual livre de Bella Baxter como um despertar que a leva para um estado de real liberdade, uma vez que falar em sexualidade é falar sobre domínio do próprio corpo e dos próprios desejos, especialmente quando abordamos corpos tidos como públicos.
Há no filme do diretor grego grandes reflexões oportunas sobre feminismo de toda natureza, inclusive o liberal que aparece quando Bella Baxter se dá conta de que existe um mundo de desigualdades e sofrimentos sociais do qual ela é blindada pelo conforto de sua vida burguesa.
Mas, ainda assim, não devemos situá-lo como feminista e, sim, como humanista porque está mais para reflexões existenciais do que para abordagem das questões de gênero que circulam com mais proeminência nos debates da atualidade.
O universo mágico e exuberante que o diretor cria para seu filme, somado aos diálogos pouco verossímeis (apesar de inteligentes) que o roteiro oferece, nos apresenta uma obra impactante e múltipla em suas intenções, que mais parece um mea culpa masculino do que uma sincera abordagem sobre os caminhos para a emancipação feminina. E de maneira alguma isso é um problema. Como mulher, prefiro tomá-lo como uma utopia para sonhar com um mundo onde as Bellas Baxters possam existir sem se importar com qualquer coisa que não seja seu próprio prazer físico como caminho para expansão humana.