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Asiáticos e negros compartilham um mesmo problema e nem sempre se dão conta

Dorama e filme nos fazem pensar sobre o racismo e como ele impacta duas culturas tão diversas que nem percebem suas similaridades

23 set 2023 - 05h00
(atualizado em 26/10/2023 às 09h08)
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O grande mérito de Itaewon Classe é a ousadia de inserir no entretenimento de massa o atraso da sociedade sul coreana em pautas que já são universais
O grande mérito de Itaewon Classe é a ousadia de inserir no entretenimento de massa o atraso da sociedade sul coreana em pautas que já são universais
Foto: Divulgação/Netflix

Doramas são produções asiáticas dramatizadas, que dominaram o mundo dos streamings nos últimos anos e já começam a invadir também a TV aberta  - Rede TV acabou de estrear sua sessão dorama. Apesar de ser um termo originalmente japonês, abarca todas as produções asiáticas que seguem esse padrão que transita entre a linguagem das séries norte-americanas e a dramaticidade das telenovelas brasileiras, com episódios semanais longos (com cerca de 1 hora) em temporadas curtas.

Nesse universo se destacam os doramas coreanos ou k-dramas. Mas o que chama atenção é que, mesmo usando a linguagem norte-americana e latina, são totalmente voltados para sua própria cultura, para sua própria estética e centrado nas próprias características de seu povo. O oposto do que se faz nesse Brasil de forte influência subjetiva imperialista, mesmo quando as produções se dizem decoloniais.

Itaewon Class é um k-drama, ou drama sul-coreano, estrelado pelo astro Park Seo-joon, conhecido por lá como o “rei das comédias românticas”. Mas aqui, no famigerado Itaewon (bairro multicultural e vanguardista da cidade de Seul), ele encarna uma bela história de vingança que tem como pano de fundo as questões sociais típicas da pós-modernidade que têm tomado conta das pautas midiáticas dos últimos anos: racismo, transgeneridade, etarismo, preconceitos, relações humanas e luta de classes. 

O roteiro aparentemente despretensioso, que é uma característica marcante dessas deliciosas produções asiáticas, levanta uma crítica aos discursos da meritocracia, mas escorrega ao dar uma guinada bilionária ao protagonista, que na vida real, inclusive na própria Coreia do Sul, na maioria das vezes, não seria possível. 

Que o diga a aclamada e robusta película também sul-coreana "Parasita", de 2019, do diretor Bong Joon-ho. Esse realmente enfia o dedo nas feridas de um país marcado pelas desigualdades de classe. 

Mas, claro, “dai a césar o que é de césar”, ou cada um no seu quadrado, na sétima arte o fôlego permite grandes voos no mundo dos doramas, tão comprometidos com os valores dessa enigmática e etnocêntrica sociedade, não. 

Daí vem o grande mérito de Itaewon Classe, a ousadia de inserir no entretenimento de massa o atraso da sociedade sul coreana em pautas que já são universais, apesar de também terem seu contexto histórico marcado pela exclusão e exploração. 

Na minha juventude, eu acreditava que o sofrimento melhorava as pessoas. Bem, Freud me fez enxergar que o sofrimento não ensina nada a quem não quer aprender. Na Coréia do Sul sequer existem leis antidiscriminatórias e estamos falando de um povo que também sofre racismo e discriminação da Europa e EUA. 

Mas agora, como Itaewon Class e outros k-dramas da mesma linha de roteirização nos conta, a juventude vem reivindicando mudanças e integração real com outras culturas, sobretudo diante do 'boom' da imigração estrangeira que já conta com programas políticos de incentivo. Como bem mostrou a série, estrangeiros sofrem todo tipo de preconceito e discriminação, sendo impedidos até de frequentar determinados lugares. 

Ainda assim, Itaewon Class, em níveis diferentes, mas talvez até por influência de um Oscar (Parasita), não se fez de rogada na hora de dizer para seus compatriotas asiáticos que eles têm problemas e precisam resolver.

Ok, mas será que poderia haver um diálogo entre a negritude norte-americana e a sul-coreana, especialmente sobre questões em comum, como o racismo?

Vejamos. A produção norte-americana “Eles clonaram Tyrone” (They cloned Tyrone, Netflix, 2023) é literalmente um outro universo. O estreante diretor Juel Taylor, que colaborou com os roteiros de “Creed II” e “Space Jam: A New Legacy”, partindo da história triste de um amigo, criou uma comédia de ficção científica, com descarada (e hilária) referência da blaxploitation (movimento cinematográfico que trazia protagonismo negro e que frequentemente se inspirava nas ideologias do movimento Black Power enquanto apresentava temas de empoderamento, emancipação social, muitas vezes por vias ilegais, e conscientização; a palavra é a junção da palavra negro em inglês, ‘black’, e exploração, em inglês 'exploitation').

Um cafetão (o hilário Jamie Foxx), um traficante (o excelente John Boyega) e uma prostituta (a linda Teyonah Perris) se tornam investigadores atrapalhados de uma conspiração branca para dominar negros, através de elementos que são símbolos do consumismo e aliciamento mental da negritude como frango frito, alisante para cabelos e música negra com mensagens duvidosas. 

Parece ridículo, mas a negritude norte-americana vive o oposto do que almejavam seus expoentes da luta por emancipação e direitos civis. Ao contrário do que pensa a negritude brasileira, é só dar um passeio pelos fóruns de discussão que dá para sacar que os novos modus operandi do racismo na terra do tio sam são duramente criticados pelas reais lideranças, que assim como aqui, raramente estão na mídia hegemônica. 

A cooptação das massas negras que não conseguiram entender a função política real da representatividade e, hoje, incorporam valores suicidas, tanto subjetivos quanto objetivos é uma crítica contundente no filme, sobretudo por vir de alguém que é parte desta geração. Daí entrou no ponto em comum entre as duas produções, a afro-americana e a sul coreana: a ousadia de fugir do óbvio de seus lugares de permanência e bancar críticas que vão na contramão de tudo que tem sido tão aclamado. 

Não por acaso, “Eles clonaram Tyrone” literalmente “flopou” por aqui, provando mais uma vez que Nelson Rodrigues tinha razão ao afirmar que a unanimidade não preza pela inteligência. Já Itaewon Class gerou desconforto na Coreia do Sul, e se consolidou como um novo caminho possível a ser seguido nas narrativas bem produzidas, mas açucaradas, dos doramas. 

Outro ponto que não é comum, mas constitui um diálogo importante, é sobre a abertura que essa nova narrativa sul coreana ensaia aderir, que sai do etnocentrismo enfático e sem culpa, para uma espécie de globalização consubstanciada, já que os elementos imperialistas não estão ausentes ali. Daí, partindo da crítica da cooptação feita pelo Juel Taylor em sua obra instigante e inovadora, parece que uma advertência é direcionada à juventude coreana: se abram para o mundo, mas cuidado para não serem tragados pela ambivalência da integração racial, como nós, negros, infelizmente fomos. 

Fonte: Redação Nós
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